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O PATRIMÓNIO URBANO

Esta reflexão deve entender-se no sentido de avaliar os valores que o conceito de património urbano: espacial, construído, natural e imaterial tem para a população em geral e para os diversos estratos sociais, económicos e culturais em particular no presente em Moçambique e, daí, tentar derivar algumas reflexões sobre possíveis estratégias de ação tendentes a preservar esse mesmo património. Pretende-se focalizar esta análise na importância que ao património é, ou não, atribuída pela administração pública e particularmente, mas não exclusivamente, pelas administrações municipais. Para enquadrar esta questão é indispensável esclarecer o sentido e o valor dos termos e dos conceitos a considerar e, em particular, o sentido do conceito de património urbano. A definição deste conceito pode parecer imediata e elementar se nos restringirmos ou aceitarmos o significado que ele tem para a cultura urbana ocidental, historicamente sedimentada, estruturada e radicada . Contudo a compreensão do mesmo conceito para a sociedade urbanizada moçambicana leva, segundo a nossa tese, a um diverso entendimento dos seus valores e significados o que explica, pelo menos em parte, o fenómeno da erosão continua do património natural e histórico urbano em Moçambique. Para um aprofundamento desta ideia propõe-se uma visão integradora da realidade urbana que rejeita a validade e mesmo o valor do fenómeno isolado: edifício, rua, jardim, monumento ou conjunto edificado, como necessariamente caracterizantes da cidade, ou indispensáveis a essa caracterização, nas circunstâncias da cidade africana em geral, salvo nos casos da presença de elementos naturais fortemente caracterizantes, como por exemplo a Montanha da Mesa em Cape Town, o rio Nilo em Karthoum ou as frentes marítimas em cidades ribeirinhas, que, no entanto, não servem sempre como símbolos válidos, exclusivos e reconhecidos como essenciais a uma cidade justa e culturalmente estruturada.
Que valor real tem, então, o “património” para a população urbana, por exemplo, do Maputo? Que valor acrescenta, como contribuição a uma melhor qualidade de vida?
O que aqui se questiona é a dimensão efetiva e real do “património” na vida de quase dois milhões de pessoas que não se reconhece uma relação direta e positiva entre valores estéticos ou simbólicos e a qualidade da sua vida quotidiana. De facto o que é, para essas pessoas, o património urbano?
Alguns edifícios com algum valor histórico e estético? Um tecido urbano que, no passado, funcionou corretamente para um reduzido estrato social, menor que um terço da população urbana atual? Uma situação geográfica e topográfica privilegiada com condições ambientais favoráveis, sobretudo para as classes privilegiadas? Um sistema paisagístico de grande qualidade, mas em destruição acelerada?
Será que o “património”, a considerar como significativo e desejável, justifica e implica a recuperação desses sistemas e a adaptação do tecido urbano a uma nova urbanidade feita de ocupações “informais” a quem deve ser reconhecido o direito de uso do espaço com regras diversas das que regem a urbanidade das sociedades afluentes, com raízes em vivências urbanas que devem ser reconhecidas e respeitadas? Ou seria esta uma atitude de rendição a uma condição social indesejável: a da pobreza em geral e da pobreza urbana em particular, condição essa que, por cobardia ou comodidade política e intelectual, se considera passageira mas que, à luz crua das estatísticas, se vai agravando, ano após ano, em todo o mundo?
Não me parece irrelevante esta questão.
As contradições entre as necessidades da maior parte da nossa população urbana e as necessidades dos estratos mais privilegiados são a questão mais difícil e mais politicamente explosiva que se põe às administrações municipais em Moçambique e, por idênticas razões, a todo o “terceiro mundo”.
Que têm estas questões a ver com o património?
Tentaremos esclarecer esse nexo ao longo desta exploração.
Há, ainda, outro nível de interesse e de indispensável reflexão que interessa, aqui, explorar: como é que as autoridades municipais interpretam a importância do património urbano, considerado mais restritamente, como o conjunto das presenças urbanas com valor histórico, monumental, cultural ou natural?
A análise e a resposta a estas questões tenta explicar, sem pretender justificar, o “desastre” sistemático que as nossas cidades sofrem ás mãos de administrações menos sensíveis a valores históricos e culturais e, mesmo, como atrás se começou a apontar, a valores de justiça social.
Em muitos destes aspectos a degradação do património urbano não é apanágio exclusivo das cidades do terceiro mundo em geral e das cidades moçambicanas em particular mas, também no nosso caso, estão a atingir-se níveis insustentáveis na dinâmica desse fenómeno.
Se analisarmos, em primeiro lugar, o que acontece com o património natural veremos que há uma generalizada ignorância sobre a importância da manutenção do equilíbrio ecológico, com atentados sistemáticos ao equilíbrio dos sistemas biofísicos e com consequências negativas irreversíveis, as mais das vezes por ignorância irresponsável ou propositada, sendo essas consequências cinicamente explicadas ao público como resultado de fenómenos naturais imprevisíveis ou incontroláveis.
Nesta frente estão a erosão generalizada das encostas, o desaparecimento dos mangais e das zonas húmidas, a redução implacável das áreas verdes dentro das cidades por abandono ou para beneficio privado, a poluição química e biológica do solo e das águas marinhas, lacustres e fluviais, a poluição do ar e a poluição sonora, a desflorestação sistemática, a extinção das espécies, as alterações à topografia natural do terreno e a agressão aos sistemas hidrográficos.
O efeito desta condição é devastador em relação a um património natural em equilíbrio, embora precário, até muito recentemente.
No caso particular do Maputo a destruição é já irrecuperável e os seus efeitos têm consequências desastrosas para centenas de milhares de pessoas, quer na redução drástica das amenidades que os sistemas naturais poderiam oferecer: praias, parques e jardins, clima e qualidade do ambiente, quer no agravamento constante da qualidade de vida urbana em geral.
O aspecto mais grave desta situação é, colateralmente, o facto de que muitos dos fenómenos de destruição do equilíbrio ambiental são consequência direta de decisões ilegais pois que são tomadas à revelia de instrumentos de ordenamento territorial aprovados e com força de lei, precisamente pelas autoridades a quem compete assegurar o respeito por esses mesmos instrumentos legais.
A situação descrita deve-se a factores bem identificados, objectivos e conhecidos: abuso do poder administrativo para favorecer pessoas ou organizações económicas ou politicas; corrupção administrativa, o que no fundo é o mesmo fenómeno mas praticado a níveis mais baixos da máquina administrativa; ignorância de procedimentos técnicos e legais elementares e sujeição a decisões extemporâneas tomadas a níveis superiores ao da administração municipal, representando um grave atentado ao sistema democrático e à hierarquia administrativa.
Esta situação só terá solução quando, por um lado a administração municipal assumir plenamente a sua responsabilidade e se dotar com as competências necessárias para zelar pelo cumprimento dos planos aprovados e, por outro, quando a população urbana conhecer os seus direitos e exigir o cumprimento das leis e dos regulamentos em vigor.
São estas condições que, num futuro próximo, se nos afiguram como pouco prováveis.
Passemos agora a analisar a situação do património histórico edificado.
Neste âmbito consideramos todos os elementos que compõem o espaço urbano: ruas, praças, jardins, conjuntos edificados coerentes na sua escala e expressão arquitectónica e componentes notáveis da paisagem urbana: monumentos, equipamento público e edifícios de valor histórico e arquitectónico notável.
As nossas cidades em geral, e em Maputo em particular, são um exemplo inescapável da falta de sensibilidade e de respeito por todos aqueles valores.
Começando pelas ruas o espetáculo é confrangedor. O piso degradado é o factor comum, agravado pela péssima qualidade dos poucos exemplos de reabilitação executados sem respeito pelas características técnicas a manter, particularmente no que diz respeito aos sistemas de drenagem, cota das tampas das caixas de visita dos sistemas subterrâneos e aceitação de péssima qualidade na execução dos trabalhos como resultado de incompetência técnica na execução dos projectos, contratos defeituosos e conluio da fiscalização com as empreiteiras, tacitamente aceite, senão participado, pelo “dono da obra”.
O caso das ruas torna-se mais grave quando se assiste a uma total falta de atenção dada aos passeios e à forma como se deixa que sejam usados, quer pelos automobilistas, quer por vendedores ambulantes ou fixos, para os quais não há qualquer respeito ou atenção, sendo inevitável considerar que, numa situação em que o comércio e a economia informal são essenciais à sobrevivência da maioria dos citadinos, a sua presença deve ser reconhecida, aceite, regulamentada e expressa no tratamento qualificado do espaço público.
É sintomático da falta de visão e respeito pelo público, por parte das autoridades municipais, que não tenha ainda sido construído um único sanitário público nem na cidade, nem na frente marítima, onde não há qualquer forma de conforto oferecido às dezenas de milhares de pessoas que usam a praia e cujo único apoio lhes é dado por vendedores ambulantes de bebidas e comidas, em péssimas condições de higiene.
Aqui importa registar a degradação de um património intangível, mas fundamental, que é o da dignidade humana.
Evidentemente que nem só o piso ou a qualidade técnica das ruas definem a qualidade destes espaços urbanos. Igualmente importante são os elementos que lhe definem o espaço e os atributos: a sua cobertura vegetal: o seu tratamento paisagístico, o mobiliário urbano, a sinalética, a escala dos edifícios que lhe definem o espaço, ou a falta de respeito por essa dimensão, as formas selváticas de parqueamento dos automóveis e, com maior importância, a desregulação do tráfego motorizado e a sua relação homicida com os peões. Um exemplo caricatural desta falta de sensibilidade ao decoro urbano é o anuncio da paragem dos transportes públicos municipais pregado, torto, numa árvore !!! em frente ao meu escritório...
Todas estas dimensões são, sistematicamente ignoradas, desprezadas ou esquecidas em toda a extensão da malha urbana, tanto formal como informal.
Pelo contrário o que se tem permitido, com a inaceitável explicação de que isso beneficia enormemente as finanças municipais, é a poluição visual das melhores perspectivas urbanas com cartazes publicitários descomunais e perigosos, por vezes até fazendo propaganda a bebidas alcoólicas e tabaco.
O caso dos edifícios históricos com maior valor arquitectónico não foge à regra. O desprezo pela mais elementar manutenção é generalizado e as alterações às características originais dos edifícios são sistemáticas, começando pela instalação de aparelhos de ar condicionado das formas mais agressivas, decididas por qualquer instalador, totalmente insensível ao valor estético e histórico do edificio.
Neste sentido, o caso do edificio do Conselho Municipal, que deveria assumir o valor de exemplo, é um dos mais significativamente negativos.
Aliás o que se tem permitido é, pura e simplesmente, a demolição sistemática de qualquer edificio que esteja a impedir a especulação imobiliária mais desenfreada ao mesmo tempo que se tolera a existência de ruinas, perigosas para a segurança do publico, no próprio centro da cidade.
A insensibilidade a esses valores vai mais longe permitindo-se e aprovando-se alterações que anulam por completo os valores que caracterizam os edifícios com valor histórico, quer quanto à sua escala quer quanto à sua expressão arquitectónica.
Estamos também já muito próximos da completa paralisação da circulação automóvel pois que se continua sem se compreender que os transportes urbanos, tal como a saúde ou a educação não podem dar lucro.
A privatização destes serviços públicos só é possível porque se aceitam as condições desumanas em que são explorados. O tráfego automóvel privado encontra, assim, a justificação para aumentar exponencialmente e sem qualquer controle. As poucas formas de controle estabelecidas não têm qualquer efeito significativo dada a cultura de suborno generalizada entre os agentes da autoridade policial, a todos os níveis e, praticamente, sem excepção.
Nenhuma das formas, nem mesmo as mais brandas, de limitação do tráfego de viaturas privadas foi ainda considerada e, muito menos, implementada.
Isto porque não foi ainda criada qualquer alternativa integrada para resolver o caos actual do transporte púbico.
O futuro projecto de um modo de transporte urbano dependente de altíssimos investimentos em infra estrutura e equipamentos só poderá sobreviver com custos dos bilhetes proporcionais e fora do alcance do público alvo. Dado que não se contempla um subsidio que resolva o fosso entre o custo do seu estabelecimento e exploração e a capacidade de pagamento por parte do público, o que se pode prever é, mais uma vez, um agravamento da presente situação uma vez que a circulação dos veículos privados será ainda mais intensa e mais difícil pois que será mais dificultada pelas modificações introduzidas na infra estrutura. Dada a estrutura de preços prevista e uma agravada incapacidade de controle é irrealista pensar-se que o sistema “chapa” se vai limitar a ser um alimentador local do sistema de longa distância proposto, ou que os milhares de pessoas que necessitam transportes a custos aceitáveis irão tolerar mais essa brutalidade administrativa.
O problema passará rapidamente para níveis de instabilidade social generalizada obrigando, mais uma vez, a administração municipal a retratar-se, sem ter resolvido o problema mas tendo, pelo contrario, agravado a capacidade futura de investimentos em soluções integradoras das diversas formas de transportes públicos.
Entretanto as intenções do plano de estrutura são sistematicamente esquecidas, ou muito limitadamente aplicadas, desintegrando e tornando incoerente toda a estratégia de desenvolvimento urbano proposta e aprovada com força de lei, que poderia moderar a gravidade dos problemas de circulação na cidade.
Este panorama resulta, antes de mais, na falta de confiança na administração municipal pois que o público reconhece facilmente, e justamente, a sua incapacidade e incompetência para governar o uso do espaço público e privado.
Tudo isto se passa em toda a extensão do território urbano, onde circulam diariamente os governantes, que parece não terem olhos para ver, ou são insensíveis à acelerada degradação da paisagem e da vida urbana
Os riscos desta situação são gravíssimos: a falta de solução para os problemas mais primários que enfrenta a larga maioria da população urbana: falta de transportes, alto custo de vida, falta de escolas e de centros de saúde, inexistência de sistemas de saneamento e drenagem, de energia e de recolha de resíduos sólidos só podem agravar-se e agravar as condições de vida urbana para níveis cada vez mais inaceitáveis para todos.
No meio de toda esta desgraça tornou-se pública uma lei municipal que proíbe a mendicidade !!! e estabelece penalizações a quem dê esmola na rua!!! como se fosse possível plantar um policia ao lado de cada mendigo!
Falta agora uma lei municipal que proíba morrer...
Estas são as dimensões do “património urbano” que interessa considerar.
Infelizmente as condições indicadas são, quase todas, negativas e interessa reconhecer que as nossas cidades são antes de tudo o reflexo e a consequência da degradação das condições sociais, politicas, económicas e culturais do país.
Não será fácil, portanto, corrigir a condição de habitabilidade da cidade sem corrigir a condição do país.
O lado positivo da vida nacional está na resiliência e na capacidade de sobrevivência que a população, sobretudo a urbana, demonstra e manifesta e que é, aliás, verdadeiro para toda a África e amplamente provado em todo o Moçambique.
Como exemplos disso basta considerar os “dumbanengues”, verdadeiros centros comerciais populares, que são uma das respostas mais efectivas e espectaculares que as pessoas e a situação económica e social da cidade encontraram para o comércio, a níveis realistas de acesso por parte da maioria da população urbana ou a solução, com certeza imperfeita mas pelo menos positiva e possível, que a auto construção da habitação vai trazendo para a maioria das famílias em Moçambique.

JOSÉ FORJAZ

2016

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