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REFLEXÕES DOS 70 ANOS

A quem podem interessar estas reflexões? 
A quem procura, noutros, uma experiência que o ajude ou que o acompanhe nas suas próprias? 
A mim próprio pois, embora estas reflexões sejam sempre de restrito interesse e de futuro incerto, podem ajudar-me a ver mais claro neste mar de dúvidas que tem sempre quem trabalha no domínio público?
Ao contrário dos dentistas e dos cangalheiros, o que fazemos é visto por muita gente, usado por muita gente e afecta muita gente. Daí que sejamos tão facilmente crucificados ou, com o mesmo valor, santificados. Por isso nos distraímos tanto. Gastamos tanto tempo preocupados com a imagem que projectamos. Nos tempos, como se diz em Moçambique, a única preocupação do arquitecto era a obra bem feita, segura, confortável, económica. 
Não se sabia sequer quem era o arquitecto.
Agora, sem propaganda não há trabalho. Sem projecção não há auto respeito. Sem a revista, sem a exposição, sem o livro não se é ninguém.
É tempo de voltarmos a uma arquitectura que não seja uma performing art.
À arquitectura que é uma procura constante e uma descoberta permanente; aquela que tem em si própria o seu preço e o seu valor.
Que problemas afrontam os arquitectos agora?
Falta de trabalho para muitos? Trabalho a mais para uma minoria? Interferência dos mecanismos de especulação imobiliária? Incultura dos clientes? Dependência de filiações partidárias? Manipulações corporativas? Concorrência por parte de técnicos não qualificados que se vendem por honorários de miséria? Captação de clientes por parte de funcionários municipais, com a garantia de aprovação dos próprios projectos? A sua própria incultura?
A verdade é que nunca houve tanto talento neste mundo e, também é verdade, que nunca houve tanta necessidade de arquitectos com talento. Mas estão eles disponíveis para trabalhar onde, quando e como necessário?
Não pretendo dar resposta a tão impossíveis questões, mas não posso deixar de as propor. Parece-me possível entrever uma situação em que o arquitecto poderá voltar a assumir a figura do construtor que resolve a situação desde a concepção à realização, obra a obra, especificamente, dedicadamente, competentemente. Naturalmente que isto parece ser uma maneira anti “natural” de pensar, nesta época de grandes organizações que monopolizam o processo do projecto “assegurando” a “eficiência”, a “responsabilidade civil”, a “qualidade” técnica, a “credibilidade” da corporação e, em última análise, o valor de “marca”.
E será isso de culpar? Afinal de contas o risco é, para essas empresas, muito grande. Centenas de empregados devem receber salário todos os meses. As despesas fixas são enormes. A eficiência é muitas vezes ilusória.
Por outro lado, o interesse pela arquitectura aumentou exponencialmente nos últimos 50 anos. Também, com a libertação da mulher, uma profissão caracteristicamente masculina abriu-se à outra metade do mundo, que lhe trouxe novas dimensões na sensibilidade com que focaliza os problemas e na atenção que traz a novos aspectos da função social e psicológica do projecto.
A complexidade do processo construtivo acelera a tendência para uma atitude de distanciamento ao estaleiro de construção que, como consequência também da estrutura legal dos contratos de construção, mais confina o arquitecto ao monitor do computador, à espacialidade literária (? What do you mean? This sentence needs re-writing), à sensação menos sensorial que de imagem sintética e descrição retórica. 
O computador, magnífica ferramenta, não contém a capacidade crítica que impeça o arquitecto de imaginar o impossível. Assim, o jogo formal pode assumir a forma de exercício esheriano passado, depois, aos tecnólogos para que o transformem em possível, mesmo que ilógica, tectónica.
A fase em que estamos é a de um novo-riquismo tecnocrático em que se confunde irresponsabilidade construtiva com imaginação formal, pela facilidade do abuso dos meios que, agora mais que nunca, nos dão a ilusão de um controle quase completo da previsão formal.
Vai-se assim construindo uma realidade ficcional, que se tenta fazer transbordar para o mundo real, justificando-a e envolvendo-a com o manto diáfano de uma pseudo cultura arquitectónica, auto referenciada e cada vez mais distante da materialidade das quatro dimensões do mundo construído. Esta visão narcisista é estimulada por uma constante necessidade de inventar, para gastar, novos ”heróis” protagonistas da indústria da literatura arquitectónica que, através de uma divulgação acrítica, promove, pois que necessita, a novidade formal à custa da resposta inteligente e racional aos problemas do habitat sustentável, de qualidade generalizável e acessível a todos.
Mas os males mais profundos e difíceis de resolver estão ainda, e como sempre, ao nível da cidade. 
Ao nível da construção de um meio urbano onde a vida social reassuma os valores da vida cívica, onde as pessoas sejam novamente os protagonistas da riqueza humana dos espaços, onde o tempo seja recuperado e valorizado, onde a insegurança não seja mais um parâmetro do projecto, onde o espaço natural e o espaço urbano se completem e se equilibrem, onde a escala e a medida humana sejam as que contam e as que definem as distâncias e os tempos e onde a arquitectura seja uma lógica consequência daqueles parâmetros e daquelas dimensões.
Nesta base, e só nela, se pode e se deve construir a boa arquitectura urbana.
Que responsabilidade temos nós arquitectos e urbanistas na construção daquela arquitectura naquela cidade?
Grande parte, embora a maior parte dessa responsabilidade caiba aos políticos, pois que o espaço da vida humana é sempre uma categoria política. É no espaço que se materializam os vectores do poder que foi sempre e é, neste dia e época também, o objectivo primário da luta política. O espaço define a classe social, as vantagens materiais, o conforto da vida quotidiana, o lucro imobiliário, o luxo do tempo, o privilégio e a sede do poder.Infelizmente, a cidade, esse facto universal, evolui sistematicamente para uma realidade cada vez menos democrática. Cada vez mais segregada, mais dividida, mais deserta, mais longínqua, mais desconfortável.
Argumenta-se que muitos centros históricos são cada vez mais apetecíveis, mais ricos de oportunidade cultural, mais habitáveis e mais belos. Sem dúvida. Mas por cada um desses pequenos e isolados casos aumenta, cada dia, a cidade dos marginais, o dormitório do perigo e do medo, o slum sem serviços nem infra-estruturas, a distância já impossível ao local de trabalho.
Dessa só escapamos por chauvinismo, provincianismo ou alienação.
A aldeia global é, agora, a cidade global. A cidade inescapável dos biliões de danados da terra, que cresce todos os dias. Paris, Londres ou Lisboa. Barcelona ou Roma. Beijing ou Nova Delhi, São Paulo ou a Cidade do México, Tijuana ou El Passo vão-se enchendo com uma humanidade que ninguém quer mas que ninguém pode impedir de ali chegar.
Tentar impedi-lo é parar o vento com as mãos.
Os grandes blocos político-económicos estão cada vez mais permeáveis. Os EUA e a UE, os nórdicos ou os do mediterrâneo, os da Califórnia ou de Brisbane, os de Brindisi ou os de Veneza, vão ter que se adaptar à ideia de se tornarem cada dia menos fechados, cada dia mais cosmopolitas, cada dia mais expostos à miséria humana que pretendem evitar ou que julgaram ter evitado.
As cidades vão mudar.
Se não tomarmos a sério essa imparável avalanche vão mudar para muito pior, para todos. Se nos prepararmos para abrir e utilizar as possibilidades que já temos na mão para resolver o problema global mudarão para melhor, para todos. 
E que têm os arquitectos com isso?
Nada, se se refugiarem no seu esteticismo lírico, no seu cinismo “profissional”ou na sua tecnocracia mercenária. Tudo, se perceberem a arquitectura como uma actividade cívica, um campo de acção guiada por valores éticos, um exercício constante de coerência ideológica. Tudo, ainda, se a procura formal e dos valores poéticos de cada decisão resultar da sabedoria técnica e ambiental, da economia de meios no seu sentido mais amplo, da racionalidade e da inteligência. 
Dois factores são inescapáveis no exercício actual da arquitectura:
A coerência ideológica e a condicionante ambiental.
Não são novas estas dimensões, nem foram, até agora menos conhecidas. Mas é novo o seu valor relativo pois é crítica a sua importância global. Tão crítica que de pouco nos serve uma história tão longa. Tão novo que necessita de uma nova arquitectura. 
Uma arquitectura descomprometida com a história das formas e das maneiras habituais de fazer, que resulte de novas condições e aproveite o novo conhecimento, que se exponha à surpresa da descoberta lógica e inevitável que lhe deve vir de uma visão mais vasta e longínqua que a do momento ou do lugar. 
Cabe, então, a cada um de nós encontrar o nexo entre aquelas dimensões e as decisões de cada momento, de cada dia, de cada projecto. Em arquitectura, talvez mais que na maioria das outras actividades criativas, “os sonhos da razão produzem monstros” e, no momento actual, os sectores críticos mais vocais e de maior audiência querem monstros, que monstros são o que se vende, são o que está “a dar”.
O processo mais corrente, e menos nobre, tem sido o do isolamento de um aspecto ou factor formal ou sociológico, ambiental ou tecnológico, para o transformar em leitmotif forçado e magnificado para lá da sua real importância relativa no conjunto de todas as outras determinantes espaciais. Esta atitude de imposição ou alienação temática é de sucesso garantido e fácil pois, na deformação que cria, torna clara, para leigos e conversos, uma leitura simplificada da obra emprestando-lhe, por defeito, uma presença esquemática de alguma força plástica que, na maior parte dos casos, esconde uma indigência real de conteúdo espacial e/ou de contribuição à qualidade do espaço urbano em que se insere.
Através desses esquemas e processos de composição tem-se vindo a criar uma tendência patológica de imposição, bem suportada pela literatura oportunista, da arquitectura como objecto, quanto maior melhor, da maior mediocridade como espaço habitável, ou mesmo inabitável, epidermicamente tratada sem qualquer relação com o sistema de espaços interiores, sem função de controle ambiental e criminosa em termos económicos.
Essa alienação em relação aos factores não visuais empobrece e esvazia a obra arquitectónica do seu conteúdo mais profundo, reduzindo-a a objecto lúdico categorizável ao nível da moda e na mesma escala temporal. De resto, mais não seria de esperar como produto de uma sociedade que deve consumir e, antes de mais, consumir imagens.
E, contudo, ninguém nega o valor daquelas estruturas centenárias, e mesmo milenares, que nos servem desde a sua construção, admiráveis na sua tectónica e na sua utilidade, na sua espacialidade, na força da sua imagem. Neste sentido será relevante lembrar que alguns dos espaços, fechados ou abertos, com a melhor acústica, já construídos e ainda em uso, têm entre dois mil e quinhentos e duzentos anos e seguiram regras canónicas que lhes não impuseram a necessidade de épater le bourgeois. 
Por outro lado, entre esculturas fora de escala e tours de force tecnocráticos, vamos colectivamente perdendo a maior oportunidade, desde que saímos da caverna, para fazermos uma arquitectura indispensavelmente nova, urgentemente inteligente, intransigentemente comprometida com a salvaguarda do ambiente e verdadeiramente democrática.
É, portanto, uma nova arquitectura que se impõe e se necessita. Uma arquitectura nova “por dentro” e não vestida de “novidades” por fora. Nova porque responde a novas situações políticas, sociais, económicas e ambientais. Imperativamente nova porque se insere na necessidade, que pela primeira vez se equaciona na história da humanidade, de garantir a sobrevivência da humanidade no planeta ameaçado.
Uma arquitectura que se integre na história das ideias e não, só, na história das formas.
As raízes dessa arquitectura existem já e estão a irromper em troncos robustos de novas formas de pensar. Em todo o mundo, profissionais conscientes esforçam-se por resolver o problema ambiental dos edifícios por formas cada vez mais eficientes e menos comprometidas com formalismos epidérmicos.
Um corpo de doutrina científica importante existe já e toda uma série de indústrias está a desenvolver-se para responder aos imperativos ambientais da construção sustentável. Se os arquitectos quiserem, podem já projectar construções “inteligentes”... assim as queiram pagar os clientes e as imponham os regulamentos.
Não estamos, no entanto, nem perto, ainda, de uma atitude generalizadamente inteligente. A vasta maioria do que se projecta e se constrói é ineficiente, de impacto ambiental negativo, socialmente impróprio e urbanisticamente destrutivo.
O perigo continua a ser o mesmo de sempre: que se equacionem os problemas como tecnológicos e não como, eminentemente, ideológicos. 
Caricaturando a situação: de que serve um edifício, magnificamente resolvido como máquina espacial e tectónica sustentável, se, para as mesmas funções, se poderiam construir metade dos metros quadrados?
De que serve o enriquecimento espacial e funcional dos centros das nossas cidades quando as periferias se vão empobrecendo e a sua população aumentando para densidades incomportáveis?
De que servem seminários, congressos, reuniões científicas, associações de defesa do ambiente, publicações e média em geral, se quem determina a qualidade dos edifícios é a máquina imobiliária especulativa e não o Estado, que deveria impor aos cidadãos as regras mais elementares da urbanidade e da sustentabilidade?
De que serve a sustentabilidade se ela não for assegurada a todos os homens?
De facto, não há sustentabilidade para alguns só e, enquanto houver descriminação na acessibilidade às condições mínimas que o indivíduo deve ter asseguradas à nascença, não há sustentabilidade para ninguém.
Estarão estas reflexões já muito longe da arquitectura? Muito longe do que fazemos todos os dias?
Eu penso que não.
A evolução da figura profissional do arquitecto, como agente da transformação positiva do habitat humano, leva-nos à necessidade de uma cada vez mais profunda capacidade de análise filosófica e posicionamento ideológico.
Do mestre construtor gótico ao humanista servidor do príncipe, o actual criador de espaços e formas arquitectónicas deve ser, agora, o pensador da razão de ser social desses espaços e dessas formas. 
Para isso tem ele agora instrumentos fabulosos de materialização das suas ideias tectónicas e do espaço urbano. 
A arquitectura e a urbanística são agora, mais do que nunca, o campo de acção de um conjunto de especialistas que lhes resolvem as dimensões técnicas e tecnológicas, que lhes controlam os processos de execução e que lhes sabem avaliar as prestações, incluindo as ambientais. O arquitecto e o urbanista podem, agora, dedicar muito mais do seu tempo aquilo que deve ser a sua exclusiva responsabilidade: pensar e projectar o espaço social coerentemente com os princípios universais do equilíbrio ambiental e da justiça social. G
Serão estas noções abstractas de mais e tão vastas que não têm sentido?
Penso que não. Penso mesmo que não têm nada de abstracto e de vazias de sentido.
Mas penso, também, que a máquina especulativa é muito poderosa, imparável e demolidora.
A tentação da forma fácil e do ganho fácil corrói, desde o início, as carreiras profissionais. Arruma inelutavelmente quem não se lhe submeta. Aspectos mais sinistros ainda envenenam a profissão: as comissões tomadas como legítimas e “naturais”, o projecto esquemático e incompleto como prova do “génio” do artista para quem o detalhe é uma mediocridade a resolver pelo construtor... e a pagar pelo cliente, a economia de meios e de espaço como uma mesquinhez, a falta de senso social como um problema alheio, o corte dos honorários, compensado com as comissões e com o desrespeito pela qualidade do projecto, como prática corrente e aceitável.
E mais, porventura muito mais, que as organizações corporativas convenientemente esquecem ou são impotentes para enfrentar.
Que nos fica então como esperança?
Esta é uma questão que tristemente nos obriga a uma pausa de profundo significado.
Que nos fica, depois, como esperança?
Talvez não muito mas, escassamente, o suficiente?
Para alimentar essa esperança no arquitecto vale a riqueza dos seus meios de expressão. A densidade dos materiais, a tridimensionalidade e a temporalidade do que ele inventa e do que ele constrói. Valem o imediato da forma e dos sons que ela encerra. Vale a luz que revela ou esconde outras distâncias, outras transparências, outras camadas do sensível e do intangível.
Valem o refúgio sentido nessas dimensões, a presença desses espaços, a frescura conseguida e a protecção oferecida do abrigo.
Vale a crisálida do estaleiro donde sai o edifício acabado e incólume.
Vale o esforço do valor lógico da forma e do processo de a conseguir.
Vale a dúvida e a certeza, a paixão e a desilusão. Vale a luta, irracional, por acreditar que tudo isso vale a pena.
Vale o papel branco e o monitor vazio; vale a esperança por detrás deles.
Vale o primeiro risco mental, a primeira intuição, penosa ou explosiva, o pormenor coerente com o que deve cumprir no espaço que resolve; vale a descoberta do desdobrar das formas no tempo; vale o cheiro da arquitectura em construção.
Vale a irmandade dos construtores, a profanidade das palavras que exprimem e constroem; vale o ruído das máquinas, das coisas e dos homens, o perigo dos andaimes, o pó e a humidade do estaleiro, o suor do capacete.
Valem os anos que passam e as obras revisitadas.
Vale a esperança de fazer melhor.
Mas essa esperança implica que nos deixem fazer melhor.
Implica que se queira o melhor feito.
Resta agora, nestas reflexões ligar a esperança nos valores artísticos à esperança no triunfo dos valores éticos...

JOSÉ FORJAZ

2010

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