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INVESTIGAÇÃO

Os animais, mesmo os de mais completa organização fisiológica, nascem ensinados ou aprendem tudo até á maturidade sexual, até a sua largada no mundo adulto.

O seu aprender não é cumulativo entre gerações ou é-o pelas leis biológicas da especialização genética.

O homem não progride por instinto, ou não progride só por instinto. O homem deve aprender tudo.

O que os animais herdam por instinto o homem deve aprender sempre por transmissão codificada do conhecimento segundo regras que, não sendo sempre as mesmas, conduzem a níveis idênticos de conhecimento.

O homem, também nisto diferente do animal, dúvida do que sabe. Questiona-se sobre a verdade e a universalidade do seu conhecimento.

O homem compara-se á dimensão divina ou, o que é o mesmo, demoniza a dimensão humana.

O homem, assim, insatisfaz-se ou, insaciavelmente, refaz-se.

O homem faz-se.

Esta é, provavelmente a sua dimensão única, a mais humana e mais demoniacamente divina.

O homem cria, insuficientemente, a sua insuficiência e tem disso plena consciência.

Nisso o homem distingue-se do deus que ele próprio criou.

O deus sabe tudo. Chegou. É suficiente.

O homem deve aprender e é por aprender que é homem, não por saber mas por saber que não sabe.

Assim os homens começam a distinguir-se de si próprios e dos outros.

Há os que julgam saber e os que sabem não saber. Há os que, inocentemente ou não, se remetem à inconsciência certa do saber suficiente.

Valham-nos os que redimem a espécie: as crianças.

Elas perguntam, duvidam, maravilham-se com a descoberta e descobrem maravilhas.

Destas exaustivas categorias interessam-nos, quase por atitude moral, os que sabem da sua ignorância, quase porque... “deles será o reino dos céus” ou, melhor dizendo, deles sairá uma espécie mais perfeita, mais adaptada e mais adaptável, uma raça de homens mais perto do objectivo último da integração do espírito e da matéria.

Mas, porque o saber não é um ato meramente aquisitivo, mas sim elaboração, o saber não é substantivo é verbo, valha-nos então a coragem de ser curiosos.

Porque o saber é sempre um ato de coragem, um permanente estar à beira do abismo, da vertigem do desconhecido, do risco de não sabermos afrontar o que está para lá do que sabemos.

O homem, para lá das suas funções metabólicas vitais distingue-se por outras dimensões únicas e particulares: adquire conhecimentos, regista-os, codifica-os, armazena-os e transmite-os.

Destas três dimensões a primeira é aquela que mais profundamente distingue a dinâmica das épocas e das sociedades.

A aquisição de novos conhecimentos, a coragem de pensar para lá do já pensado é a dimensão que caracteriza os grandes momentos da história das sociedades humanas.

Da pedra lascada à idade dos metais, de Amon a Aton, de Aquino a Descartes, do renascimento aos enciclopedistas, do analógico ao digital, do explorativo ao eco-equilibrado a sociedade humana tem sempre progredido através da sua capacidade em adquirir novos conhecimentos.

Na topologia deste processo a universidade tem ocupado, e deve ocupar, uma posição central.

Mais que um lugar de armazenamento e transmissão do conhecimento a universidade é e deve ser cada vez mais o lugar da aquisição do conhecimento, da aquisição de novos conhecimentos.

Isso faz-se investigando e é na investigação que cada universitário deve encontrar o significado de ensinar pois só por investigar ele pode servir como modelo de intelectual, até porque a grande alegria da aventura intelectual está, precisamente, na descoberta do que está para lá do sabemos; está na descoberta do que está para lá do que os outros sabem; está na descoberta do novo, do desconhecido.

Mas a universidade é, também e perigosamente o lugar do armazenamento do saber, o lugar privilegiado do saber rançoso e auto complacente, do saber acabado e arrumado. Estéril.

A universidade pode, também e ainda, ser o lugar onde se compra e se vende o saber. Se compra o que se pode comprar, onde se vende o que se tem para vender.

Este saber empacotado e com guia de entrega ( o exame) é um saber perigoso, um saber enganador, um saber terminal se não mesmo terminado.

O que é mais frequente neste empacotamento do saber é confundir-se erudição com cultura.

Esta confusão é gravíssima e permite-me afirmar que conheço homens cultos que são analfabetos e doutores em filosofia que são incultos.

A cultura, que é indispensável ao exercício do ensino, é uma atividade criativa, sintetizadora, indutiva, inspiradora e inspirada; a cultura, como todas as culturas, faz nascer algo de novo, ela é necessária e indispensável à função última da universidade: a luta pela descoberta do saber universal e da verdade.

No nosso caso, país marginalizado e na periferia do mundo desenvolvido, a responsabilidade da universidade e da sua atitude perante os problemas sociais, económicos e culturais é, se possível, ainda maior.

A nossa responsabilidade é a de conseguir ultrapassar o atraso e a pobreza dos recursos com a utilização mais intensa e mais dedicada do maquinismo mais sofisticado e mais comum, mais único e mais acessível, mais resistente, mais económico e mais irreproductivel – o cérebro humano usado criativa e imaginativamente.

O problema da investigação é que ela é uma atividade expressa por um verbo transitivo: quem investiga, investiga alguma coisa.

É esta a sua grande dimensão: o seu objectivo, o seu sujeito, a sua razão, a sua temática, em última análise: a sua necessidade.

O problema da universidade é que ela é um meio intelecto-social onde os objetivos didáticos nem sempre se sabem articular com os objectivos científicos ou neste âmbito, com os mais elevados objetivos da investigação.

O professor universitário que melhor cumpre a sua missão parece-me indiscutivelmente ser aquele que expõe aos seus alunos o processo da descoberta, o processo da elaboração mental que, tomando o conhecimento já adquirido, abre sempre novas fronteiras lhe define novos limites.

É na exposição do seu processo de pensar, na generosa exposição das suas próprias dúvidas e sofridas certezas, na coragem da sua imaginação e na constante aferição da validade humana, científica, ética e mesmo moral dos resultados que, perante os discípulos ele adquire, e só dessa maneira o pode adquirir, o estatuto de mestre e o respeito que se deve ao pensador.

O professor que se limita à condição de transmissor de conhecimentos e de métodos, à exibição da sua auto complacente erudição, à récita ainda que iluminada do trabalho intelectual alheio poderá, no melhor dos casos, comover e mesmo empolgar os seus alunos como o faz um grande interprete musical ou teatral, mas será que lhes deixa ficar gravada a dimensão poética mais profunda do ato criativo?

Em última análise, reduzido aquela dimensão, será ele próprio necessário?

Não será que existem hoje, mais do que nunca, instrumentos para a aprendizagem autónoma que, naquelas dimensões, substituem, mesmo com vantagem, a maioria dos professores?

A minha tese é pois simplesmente evidente: ensinar é descobrir.

Para descobrir é necessário procurar. Investigar.

Para investigar é preciso identificar o que é mais relevante e necessário ao progresso e à evolução do individuo e da sociedade em geral e em cada ramo da ciência, da filosofia e da arte em particular.

É evidente que, assim definido, o investigador, o professor-investigador é sempre um pioneiro, um homem enraizado na sua época e na sua sociedade, um conhecedor profundo do já explorado, descoberto e conhecido, um generalista que sabe o valor exato e justo de cada dimensão do conhecimento especializado no mosaico complexo e coerente do saber.

É um homem que compreende profundamente as dimensões necessariamente poéticas da ciência e as dimensões científicas da arte e que toma e usa a filosofia como a coluna vertebral estruturante da sua razão e processo de pensar.

É um homem cuja visão dos fenómenos é sempre global pois só assim sabe compreender o significado do particular.

Parece-me, e apenas com a dúvida indispensável, que o dito se aplica logicamente a todos os quadrantes do pensamento criativo: à filosofia, à ciência e às artes, que se complementam, se justificam e se realizam.

Porquê então, pelo menos no nosso meio, investigar é, ainda, tão raro?

Dizer que não há tradição não explica nada. Não há, por exemplo, tradição de acumulação de riqueza e, no entanto, ela é hoje, no nosso meio, acumulada com uma rapidez e eficiência impressionantes.

Apenas por falta de escrúpulo? Não me parece, julgo, sim, que por profunda motivação.

Motivar, já uma vez o escrevi, não é dar o mote, é provocar razão, motivo.

É isso que nos falta mais. É isso que menos transmitimos.

Porquê ?

Por um lado porque os alunos não nos sabem exigi-lo. Toda a sua escolaridade foi feita à base do exercício da memória, da lógica mecânica e enfadonha dos teoremas demonstrados, da falta de discussão e sobretudo de uma total ausência do apelo à imaginação, salvo raras e milagrosas exceções.

Por outro lado e porque numa sociedade tão carenciada como a nossa o aluno é, inevitavelmente, levado à noção de que a universidade é um passaporte para o privilegio social, antes de o ser para um privilegio cultural; um instrumento para aquisição de habilidades profissionais antes de o ser para aquisição de recursos intelectuais; um momento necessário, talvez mesmo infelizmente necessário, para o progresso material e, mais perigosamente, o aluno é levado à noção de que o que aprende na universidade, nos 3 ou 5 anos de um curso, é tudo quanto necessita de aprender para a prática da sua atividade profissional.

JOSÉ FORJAZ

1998

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