O FUTURO DA ARQUITECTURA (... EM MOÇAMBIQUE)
Esta reflexão, quase em forma de testamento, faço-a sem amargura, desilusão ou má vontade mas apenas como resultado da minha participação, a várias escalas e competências, no projeto de espaços e edifícios, públicos e privados, e na formação de arquitetos e planificadores físicos em Moçambique, nos últimos 50 anos.
É uma reflexão a que me julgo obrigado, dada aquela experiencia e a maturidade profissional e didática adquirida, pois não conheço, na literatura científica e técnica, nenhum trabalho que tenha tratado em profundidade este tema que, a meu ver, é de extrema importância, sobretudo para os mais jovens profissionais a quem falta, ainda, a perspectiva e a experiencia para se orientarem na selva da incultura arquitectónica em que operam.
Donde vimos, onde estamos, para onde vamos?
Começarei por definir o âmbito dos termos que vou usar.
No contexto desta reflexão arquitetura e planeamento físico referem-se aos resultados do exercício de projetar espaços, conjuntos de edifícios e edifícios isolados, por profissionais urbanistas, arquitetos, desenhadores e técnicos dos vários ramos da engenharia, sobretudo em contextos urbanos mas, também, noutras situações sócio-espaciais.
Deixamos de fora a arquitetura tradicional e o vernáculo pois que, no âmbito desta reflexão, se irá provar a sua importância marginal em todo o processo histórico de evolução da arquitetura formal e do planeamento físico em Moçambique.
Por outro lado consideramos como altamente relevante e de importância capital a construção do habitat urbano “espontâneo” pois, não tendo nada de tradicional, é um elemento decisivo na paisagem das nossas cidades e explicita, talvez da forma mais clara, as tendências da evolução e as ambições duma sociedade a quem tem sido negada, a todos os níveis, a formação de uma cultura visual e estética.
Este quadro de referencia parece-nos suficientemente simples e sólido para sobre ele construir uma análise objectiva que permita um prognóstico e que chame a atenção para o que consideramos o futuro ameaçado do planeamento físico e da arquitetura em Moçambique, caso não sejam considerados e debatidos os temas que, desta maneira, proponho a debate nos centros de ensino, pelos profissionais e pelo público em geral.
Consideremos, portanto, o passado e as condições em que se está estruturando o presente para, nessas bases, arriscar a imagem do futuro.
No quadro de referencia considerado, a arquitetura em Moçambique, e particularmente a arquitetura urbana ( pois que a praticada noutros contextos, na maioria dos casos, se apropriou dos modelos urbanos) foi, desde o século XVI e mesmo antes, o resultado da importação de modelos europeus e da bacia do Indico, aplicados sobretudo na faixa costeira e em situações defensivas e de maior concentração dos colonizadores europeus, do médio oriente e da Índia.
O Ibo, a Ilha de Moçambique, Sofala, Tete, Inhambane e, mais tarde Lourenço Marques, hoje Maputo, são alguns dos mais importantes e explícitos testemunhos daquilo a que podemos chamar a génese da arquitetura e da estrutura urbana eruditas em Moçambique.
Não seria, aqui, possível nem apropriada uma análise exaustiva daquela arquitetura, baseada quase exclusivamente, em modelos importados, desadequados em relação ao clima e à maneira de viver local.
Conta, também, o facto de que aqueles testemunhos são extremamente esparsos e de reduzida importância como presença urbanas e, portanto sem impacto cultural para as modernas gerações de clientes e arquitetos
Contudo há que reconhecer-lhe méritos tecnológicos, sobretudo no que diz respeito ao aproveitamento dos recursos e materiais locais e à introdução de tecnologias de aproveitamento das águas da chuva.
Menos adequados nos parecem os modelos de estruturação urbana e mesmo de composição espacial arquitectónica onde os problemas de iluminação e ventilação natural, quer na habitação quer nos edifícios públicos não são, em geral, satisfatoriamente resolvidos.
Nos séculos seguintes, e por razões que têm a ver com a política de privatização da administração de vastas áreas do território, através das chamadas “companhias majestáticas”, começa a dar-se um fenómeno que vem a caracterizar fortemente o panorama arquitectónico moçambicano: a presença das mais diversas expressões e formas projectar e construir, resultando naquilo que é um verdadeiro cosmopolitismo expressivo e estilístico da arquitectura em Moçambique.
A partir do inicio do Século XX começa a haver uma redução do leque de influências com uma maior afluência de arquitectos e tecnólogos portugueses, alguns formados noutros países. Não deixa, contudo de haver uma forte influência doutras origens, sobretudo canalisada através da África do Sul, com exemplos muito importantes como o Prédio Pott e o Hotel Polana, no Maputo, exemplos que marcaram fortemente a paisagem urbana da época.
Ao período de expressão estilística “Arte Nova”, de que pouco resta, segue-se um período de grande presença “Art Deco” que vai caracterizar durante muitos anos, mesmo para lá da sua marca na Europa, a imagem da cidade e o gosto de uma clientela que aspira a um modernismo moderado mas mais progressista que o da sua origem metropolitana.
Naturalmente que, em paralelo, se desenvolvem outras arquiteturas mais adequadas a uma população de baixa renda e descriminada a quem é negada, legalmente, a construção tradicional em materiais locais e que encontra na técnica da “madeira e zinco” uma alternativa administrativamente aceitável de construção nas cidades.
É, infelizmente uma técnica desadequada ao clima pois se, por um lado resolve alguns problemas de ensombramento não chega, na maioria dos casos a resolver o problema do isolamento térmico o que torna essas construções em verdadeiros fornos na época quente e chuvosa inaceitavelmente frias na época seca.
Deve lembrar-se que esta tecnologia da madeira e zinco tem origens mais “nobres” pois que foi, durante anos, a solução da construção rápida de edifícios para a administração colonial e para as habitações dos funcionários encarregados da administração das aldeias e vilas do interior, onde a construção em materiais mais sólidos e difíceis de transportar era praticamente impossível.
Ainda nos anos 50 do século XX havia algumas dezenas de construções de madeira e zinco, no centro das cidades, habitadas por famílias, algumas de alto estatuto social.
Algumas das características destas construções deveriam ser objecto de estudo mais profundo pois conseguiam, muitas vezes, superar, com grande qualidade estética, os limites impostos por uma tecnologia pobre e de fraca prestação ambiental.
A partir dos anos 30/40 Moçambique começa a receber uma onda de arquitetos portugueses com novas ideias, escapados de um Portugal reaccionário e retrógrado e que, aqui, vinham buscar não só trabalho mas também a oportunidade de praticar uma arquitetura em linha com as ideias do modernismo e racionalismo que, na cultura arquitectónica ocidental, se expandiam e afirmavam cada vez mais.
O contributo ideológico e formal da arquitetura brasileira começava a revelar-se, não só por identidades culturais mas também porque se entendia como uma prática mais adequada ao clima tropical.
Não só na arquitetura mas também no urbanismo há um progresso notável em todas as regiões do país com a criação e o desenvolvimento de tecidos urbanos densos, escapando ao síndroma das periferias dormitório suburbanas para as classes mais privilegiadas que, cada vez mais, caracterizavam as cidades nas ex-colónias britânicas e, particularmente, na África do Sul.
Evidentemente que este desenvolvimento e esta qualidade urbana não abrangiam a população descriminada que, essa, continuava a habitar as periferias não planificadas, sem serviços nem equipamentos básicos.
Com a ameaça de uma possível guerra de libertação do domínio colonial, Portugal compreende, finalmente, que deve investir fortemente nas colónias e, a partir dos anos 60 criam-se condições para o nascimento de industrias locais e realiza-se a construção de algumas infraestruturas essenciais, para lá daquelas exclusivamente dedicadas ao serviço da África do Sul e dos outros países do hinterland: Rodésia e Zâmbia, Malawi e Suazilândia).
São estabelecidos mecanismos de crédito e financiamento aos investidores privados, elaborados “planos de fomento” com bases científicas mas de discutíveis estratégias sociais, estabelecidas as bases para a imigração de grande número de camponeses e trabalhadores portugueses e ampliada a rede de equipamentos sociais.
À falta de estatísticas fiáveis poderemos arriscar a afirmação de que se construiu mais na década de 60 do que nos 300 anos anteriores.
A arquitetura ganha uma nova importância. Um público mais esclarecido exige uma mais alta qualidade formal e técnica.
Começa a formar-se uma cultura em que o espaço urbano, e o edifício que o preenche, são julgados com uma nova capacidade critica e avaliados tendo em conta parâmetros de eficiência, economia e prestação ambiental, até então ausentes da análise comum e mesmo profissional.
Uma nova vaga de arquitetos, melhor preparados, tecnicamente competentes e com uma mais esclarecida consciência social chega ao país e abre o campo a um debate inédito sobre arquitetura e urbanística.
Moçambique torna-se, em poucos anos, um caso de interesse na região mas , ainda assim, considerado como periférico ao mundo mais “vasto” da cultura anglo-saxónica, com exceção de uma figura sui generis, o arquiteto Pancho Guedes, cuja personalidade artística, formação e contactos naquele mundo o projetaram a níveis mais alargados de reconhecimento.
A guerra de libertação colonial provoca, também, um fenómeno lateral da maior importância: a afluência a todas as regiões do país de alguns milhares de militares, enquadrados por centenas de oficiais com formação superior que, quase instantaneamente, elevam o nível cultural do país, particularmente das principais zonas urbanas.
As tensões criadas pelos contrastes de atitude e culturais entre esta população adventícia e os colonos à mais tempo estabelecidos no território provoca debates que despertam um novo grau de consciência em relação não só aos problemas da sociedade colonial mas obrigam a uma abertura cultural que marca a produção artística em todos os campos e levam à exigência, mais esclarecida, de uma arquitetura renovada.
O tema de debate mais importante e significativo sobre o planeamento e a arquitetura nem sequer chega, contudo, a amadurecer: como tratar o magno problema das periferias informais, reservas de mão de obra a baixo custo, verdadeiros barris de pólvora onde desperta o idealismo libertário anticolonial.
Fez-se pouco, mal e tarde.
Mascarou-se um pseudo interesse pelas condições de habitação das massas descriminadas para cobrir uma real estratégia de controle policial dessas áreas, propagandeando um paternalismo abjecto, sem tocar na verdadeira raiz do problema: a descriminação económica e social, racial e cultural que, de forma mais velada e mascarada, ainda hoje subsistem, assumindo o factor étnico, agora, novas formas, inversas e, aparentemente, menos agressivas.
É neste ambiente político e social que Moçambique acede à independência, a reboque da “revolução dos cravos” em Portugal que, lucidamente, compreende a justeza da guerra de libertação nas colónias e abandona o sonho imperial para o qual não tinha sequer a força anímica essencial à sua própria credibilidade.
É um momento, de profundo significado histórico, em que Portugal se torna um país europeu e Moçambique um território de perspectivas e ambições africanas.
Estamos em 1975.
Num momento histórico 14 milhões de seres humanos passam, sem disso terem uma consciência perfeitamente esclarecida, a ser administrados por uma classe de camaradas, cuja mais alta qualidade e competência era a de terem criado e participado na “luta armada” de libertação nacional
A níveis superiores da estrutura política e da administração pública o país conta ainda com um escol de intelectuais, profundamente comprometidos com os ideais da revolução que, guiados pela visão esclarecida e estratégica do primeiro presidente, se dedicam totalmente e asseguram, quase milagrosamente, o funcionamento do aparelho de estado a dar os primeiros passos na reconstrução do país sobre os desvios ideológicos e morais da administração colonial profundamente infectada por interesses privados e por uma incapacidade manifesta para compreender os interesses e as limitações da grande maioria da população.
Mas os obstáculos são colossais. As primeiras revelações estatísticas são aterradoras.
Uma população analfabeta em mais de 70%, uma esperança de vida à nascença de menos de 50 anos, uma falta quase absoluta de quadros, uma vizinhança agressiva e impiedosa, um mundo hostil a uma desejada e mal compreendida orientação e apoio por parte do mundo socialista, que se dilui aos poucos sem chegar a resolver nenhum dos problemas estruturais.
O país sofre mas o povo aceita e tenta compreender.
A direcção política e da administração pública evitam demonstrações de privilégios e de riqueza de origens duvidosas.
Os casos de corrupção na administração pública são raros e severamente punidos.
Chegamos assim a meados da década de 80.
Entretanto atende-se à formação dos primeiros técnicos de planeamento físico e prepara-se a criação da primeira faculdade de arquitetura, que abre em 1986.
O país dispõe de menos de 10 arquitetos nacionais para uma população da ordem dos 16 milhões de habitantes.
O pouco que se constrói é projetado por cooperantes estrangeiros e um ou dois arquitetos nacionais mais experientes e profissionais, acarinhados talvez mais pelo seu compromisso político do que pelo reconhecimento da qualidade da sua produção.
No fim da década de 80 o país é forçado a entrar, de chofre, na economia de mercado e submete-se às inexoráveis leis do “ajustamento estrutural” impostas pelas instituições de Bretton Woods e à ditadura da “ajuda” internacional que leva mais do que deixa.
A erosão de uma ética de integridade administrativa foi quase instantânea e afectou todos os níveis governativos e políticos com a garantia de impunidade absoluta, pois os maus exemplos vêm dos níveis mais altos.
Entramos, na década de 90, já convertidos à selvajaria do capital desbragadamente corruptor e abusador da rés pública, tacitamente aceite por quem tem o poder e dele abusa.
As décadas seguintes apenas refinam e confirmam a tendência para a formação e crescimento duma cleptocracia organizada e suportada pelo monopólio da máquina política que se apodera de todas as oportunidades para enriquecer à custa do bem público.
Naturalmente isto convém também aos investidores, estrangeiros e nacionais, que, imediatamente, compram sócios bem encastrados a todos os níveis políticos e da governação para, com tal proteção, operarem desavergonhadamente em negócios de que quem sai lesado é, exclusivamente, o povo.
Que interesse poderá ter este condensado histórico para fundamentar a reflexão sobre o futuro da arquitetura em Moçambique?
É a questão que nos parece essencial abordar para, sobre ela, refletirmos se, por arquitetura, entendemos mais do que uma forma de ganhar a vida e de satisfazer necessidades lúdicas e luxos intelectuais e pela procura da fama fácil que resulta do exibicionismo formal à custa duma clientela sem capacidade analítica e critica.
O problema é tanto mais complexo quanto a crise não é característica apenas dos países menos desenvolvidos mas emana, como exemplo nefasto, das sociedades mais avançadas técnica e culturalmente
O caso moçambicano é paradigmático e caricatural.
Depois de um período, curto mas impressionantemente significativo, em que os valores éticos que orientavam a sociedade, excluída por vontade própria, e por imposição, da selvajaria do consumismo, revela-se repentinamente a caverna dos quarenta ladrões com o “abre-te sésamo” da economia de mercado, imposta pelo sistema financeiro internacional e pela proteção ás multinacionais corruptas e corruptoras.
A classe dirigente, beneficiando de uma credibilidade respaldada por um real monopartidarismo político, percebe que, afinal, tinha perdido 10 ou 12 anos de oportunidades para roubar o estado em beneficio próprio e sente-se, para tal, encorajada pelo exemplo mundial generalizado de corrupção sem sanção, pois que domina também, a seu proveito, o sistema judicial.
O enriquecimento rápido das elites politicas moçambicanas não se faz sem compromissos profundos com máfias internacionais, dominadas pelo elemento asiático que controla as redes criminosas da bacia do Indico, e que esperou longos anos por esta oportunidade para operar livremente, assegurando financiamentos políticos e comprando a complacência dos poderes executivo e judicial.
A descoberta de grandes potenciais de reservas de gás, carvão, metais preciosos e não preciosos e minerais preciosos, que são objecto de contratos secretos; a sobre exploração criminosa de produtos naturais como a madeira e os recursos marinhos; a pilhagem das riquezas arqueológicas submarinas, etc, são realidades bem conhecidas por todos e claramente apontadas às autoridades, sem quaisquer consequências legais ou administrativas pois que beneficiam, sistemática e exclusivamente, figuras ao mais alto nível do poder político, que deveriam ser, elas próprias, responsáveis pela preservação desses recursos.
O país passa, agora, a admirar, embasbacado, a exposição indecente da riqueza inquestionada de negociantes da mais baixa extracção cultural e de governantes e ex governantes que, ao mesmo nível intelectual, com eles pactuam e competem, numa atitude de desrespeito total por um dos povos mais empobrecidos do mundo.
Parece haver, portanto, um nexo directo entre o sistema ideológico, ou a falta dele, e as bases em que se fundamenta a expressão arquitectónica da incultura nacional.
A arquitetura, como uma das mais significativas expressões culturais de um país, tem, no caso de Moçambique e da maioria dos países da África subsaariana, dimensões muito particulares que devem ser compreendidas no quadro da transformação de uma cultura tradicionalmente rural, muito isolada de contactos extra territoriais, para uma cultura urbana aberta, ainda incipiente.
A síntese histórica com que iniciamos este ensaio tenta apontar a evolução da cultura arquitectónica a que chamamos erudita, apenas no sentido de a distinguir das expressões tradicionais que respondem às necessidades do habitat da grande maioria da população moçambicana.
Essa distinção parece-nos essencial para podermos compreender a falta de raízes históricas, quer tecnológicas quer humanísticas, sobre a qual teremos que construir uma tradição que venha a ser assumida como própria por uma população ainda profundamente estratificada económica, social e culturalmente.
A tendência latente, presente mesmo até já nos anos heróicos, para um exibicionismo provinciano de valores monumentais, refreado apenas pelas limitações materiais desses anos, explode com o acesso à riqueza fácil dos anos sem vergonha.
A face de um povo e de um país, que não são a mesma coisa, reflete, inevitável e inexoravelmente a natureza cultural da sua sociedade.
A teocracia egípcia só produziu as pirâmides porque os escravos que as construíram acreditavam na natureza divina do faraó; Epidauro e os outros teatros, os agora e a magnifica arquitetura clássica grega são produtos de uma civilização que soube respeitar a literatura, as artes e a filosofia que glorificavam, acima de tudo, o homem, a sua inteligência, a sua coragem e a sua integridade.
Não se poderiam ter construído as catedrais românicas e góticas se o cristianismo não tivesse conseguido convencer o povo europeu, sujeito à mais abjecta exploração pela nobreza associada ao clero, de que a salvação estava para lá da morte.
O império Inca e a civilização Maia, as espantosas realizações Khmer em Angkor e as indescritíveis riquezas do património construído chinês só foram realizadas à custa do domínio político, cultural e administrativo dos imperadores a quem o povo chinês serviu sem contestação até ao século XX.
Já no século XX as abominações patológicas nazi e fascista produziram monumentos a si próprias e decidiram sobre a expressão construída das suas sociedades, impondo, a povos cultos e sofisticados, uma visão primária e doentia de líderes culturalmente deformados.
Os exemplos apontados são apenas os mais conhecidos e paradigmáticos mas não esgotam as provas da intima relação entre as ideologias dominantes e as suas expressões construídas.
A situação não é menos grave no presente, muito particularmente para aquelas sociedades sem defesas culturais face ao ataque frontal a que estão sujeitas por parte de quem as domina e manipula económica e culturalmente.
O caso africano é, em sentido negativo, exemplar.
Sem exceção, todas as sociedades africanas subsarianas vivem num limbo esquizofrénico entre a sua inserção na cultura tradicional que cada vez menos sabe e pode resolver problemas diversos dos que era chamada a resolver no contexto da tribo ou do clã, e a maneira de viver das sociedades tecnicamente avançadas, a que aspira, pois lhe reconhece as vantagens materiais.
Esta simbiose, que leva o Mercedes Benz ao curandeiro ou faz acreditar que raspas de corno incrementam a prestação sexual, é, portanto, coerente com o acreditar que um arranha céus em vidro é a mais clara expressão da modernidade institucional e empresarial ou que um palacete pseudobarroco assegura a mais alta posição na escala da importância social de quem o manda construir.
O erro evidente do efeito de estufa que uma superfície de vidro provoca, particularmente grave em climas tropicais, e o anacronismo estilístico e construtivo duma arquitectura doutro tempo e lugar, pessimamente copiada, não são compreendidos por clientes para quem o “hábito faz o monge” e que acreditam que a forma gera o conteúdo.
Para povos durante séculos privados do necessário e obrigados a conviver com uma sociedade restrita e exclusivista com acesso a tudo, mesmo ao supérfluo, a possibilidade de aceder ao mesmo nível de privilégios materiais é uma tentação irresistível que parece justificar qualquer meio para o alcançar.
A única forma de limitar essa ambição seria através de uma educação política e ideológica que tornaria impopular quem se arriscasse a promover aquelas formas de degeneração cultural.
As razões da luta contra a ocupação colonial eram fáceis de explicar e compreender por povos escravizados, explorados e descriminados por invasores de outras etnias e outra cultura.
As bases ideológicas dessa luta eram diferentes das que levaram o povo francês a guilhotinar o rei e a rainha da França.
Os povos da África subsariana são, agora, sistematicamente explorados pelos poderosos da sua própria etnia e cultura, que sabem manipular, a seu proveito, as antigas tradições do poder do chefe.
A personalidade arquitectónica de um país só muito restritamente depende das capacidades técnicas e artísticas dos arquitetos.
Ela é definida em primeiro lugar por quem paga, ou por quem tem a autoridade política e/ou administrativa para decidir sobre o que lhe é aceitável ou desejável como expressão formal dos edifícios que encomenda.
O perfil cultural do país, atrás esboçado é, portanto, proposto como a dimensão essencial sobre a qual tentar um prognóstico, desapaixonado e objectivo, sobre as formas que a arquitetura em Moçambique vai assumir no futuro.
Resta ainda expor um dado importantíssimo que poderá não ter ficado explícito: o facto de que os arquitetos são culturalmente parte integrante do ethos cultural descrito e que, na maioria dos casos, têm as mesmas limitações culturais, que não aprendem a superar em cinco anos de estudos universitários.
Do panorama descrito algumas indicações assumem proporções alarmantes pela prova que fazem da completa alienação das autoridades governativas em relação à compreensão da função e das responsabilidades dos arquitectos na sociedade.
A incompreensão da diferença entre as funções e as competências do arquiteto e do engenheiro – incompreensão que começa ao nível da docência nas universidades, leva, por exemplo, à promulgação, pelo ministério de tutela, de um decreto onde se confunde construtor, com consultor e não se distinguem competências entre especialistas nem se compreende a essência do exercício do projeto.
Resta-nos, agora, explorar, analisar e sistematizar os vectores que mais diretamente irão condicionar os percursos da arquitetura em Moçambique no futuro próximo e a médio prazo.
Podemos associa-los em diversas categorias: culturais, tecnológicas, económicas, ambientais e legais.
Alguns destes aspectos foram já referidos anteriormente mas iremos agora tentar correlaciona-los e projecta-los no tempo.
O vector cultural tem dois contextos fundamentais: o conhecimento transmitido pela educação informal, ou directamente pela sociedade familiar e alargada ao grupo de que faz parte o individuo e o conhecimento técnico, científico e humanístico que é ou deve ser transmitido através da educação formal nas instituições de ensino primário, secundário e superior e pelos meios de informação pública, quer áudio visuais quer institucionais, como a televisão, as bibliotecas, eventos culturais, festivais, concursos públicos, etc.
Na sociedade moçambicana, com uma elevada percentagem de analfabetos, uma grande diversidade linguística e uma língua oficial e de ensino ainda não conhecida e praticada por uma parte substancial da população, as limitações de transmissão do conhecimento técnico, científico e humanístico são muito importantes.
Maior importância assume, logicamente, o processo de transmissão de conhecimento através da educação informal.
Acontece que este processo está, naturalmente, a cargo de famílias e grupos sociais com sérias limitações no que diz respeito ao conhecimento técnico e científico, dado o seu perfil cultural predominantemente rural e o seu isolamento em relação aos meios de comunicação social, eles próprios com grandes limitações culturais. Esta última condição não é exclusiva do meio rural pois mesmo em contexto urbano o acesso a literatura e outros media é muito restrito.
Naturalmente que o esforço de alfabetização e o desenvolvimento das instituições de ensino a todos os níveis irão acelerar muito o impacto da educação formal na elevação do nível cultural da população. Mais difícil é prever a dinâmica desse processo pois que ainda são muito pesados os aspectos negativos a que está sujeita a educação escolar, dada a fraca preparação dos professores, a todos os níveis, a falta de incentivos para as carreiras académicas e os baixos salários que se pagam aos docentes.
O problema é particularmente grave ao nível primário onde poucos são os professores com uma compreensão correta das sua responsabilidade didáticas e cívicas e com a necessária preparação científica.
O mesmo se pode afirmar, sem grandes correções, para os níveis secundário e mesmo universitário que, este, além do mais, deve corrigir as lacunas e os métodos de ensino impróprios dos níveis anteriores que fazem com que os alunos cheguem às universidades desprovidos de ferramentas e desconhecedores dos processos de estudo e investigação.
O contingente de alunos que acedem às universidade provenientes das escolas privadas e que vêm, em geral, melhor preparados, é um factor importante para a elevação do nível cultural das turmas mas não é suficiente para superar as lacunas apontadas contribuindo até para a manutenção de alguns desequilíbrios sociais.
A dificuldade está em determinar em que medida este filtro de competências vai conseguir responder às crescentes necessidades do país em termos de técnicos capacitados para, progressivamente, assumirem as responsabilidades cada vez mais complexas que o desenvolvimento social, económico e tecnológico impõe.
O maior perigo será o de uma crescente tecnocracia, pois que não se vê ainda qualquer esforço para introduzir nos cursos técnicos cadeiras de integração do conhecimento nem um sistema de opções que abra aos estudantes o interesse pela integração das tecnologias num sistema de pensamento humanístico.
Este desvio educacional e pedagógico é tanto mais difícil de combater quanto é cada vez mais universal e apelativo ao oportunismo insipiente e inseguro, mas já contaminado, das gerações mais jovens.
Para tal contribui fortemente o ambiente de auto satisfação e ausência de referencias intelectuais e de competência técnica que um sistema deformado de formação universitária acelerada e insuficiente, incute nos recém formados que, só tarde e penosamente se dão conta das suas insuficiências.
As consequências desta conjuntura são dramáticas.
Um outro vector determinante da evolução das formas que virá a
assumir a arquitectura em Moçambique é o da absorção e aplicação indiscriminada de novas, mais elaboradas e sofisticadas tecnologias construtivas em construções públicas e privadas, institucionais ou particulares e a todas as escalas.
O provincianismo característico de uma sociedade menos desenvolvida em todos os aspectos: sociais, económicos e culturais resulta, inevitavelmente, na escolha, acrítica, dos modelos de comportamento e formais caracterizantes de sociedades mais desenvolvidas.
Estes modelos são, não só desejados, mas impostos como indispensáveis à criação da única imagem, tomada como “civilizada”, a plasmar na nossa paisagem urbana, por agentes financeiros e técnicos, recém chegados, para quem a ideia da adequação às condições ambientais, económicas e culturais locais não tem qualquer significado.
O problema é mais grave em Moçambique, dada a falta de capacidade analítica discriminante por parte da classe decisora face à imposição, nefasta, vinda com idêntica virulência de todos os quadrantes geográficos e culturais: do Norte, do Sul, do Leste e do Oeste.
A ideia de que a solução tecnológica dos problemas arquitectónicos deve ser encontrada a partir das condições ambientais, materiais e culturais locais não parece ter qualquer ressonância ou mesmo merecer a consideração do “cliente” privado ou institucional.
As consequências desta situação são desastrosas, antes de mais em termos de desgaste económico e financeiro mas, também, pela erosão da qualidade ambiental das construções, da sua manutenção e, finalmente, pela indigência estética dos resultados.
Naturalmente, como “santos de casa não fazem milagres”, as vozes locais que ainda tentam lutar por uma atitude mais esclarecida são consideradas como reacionárias ou atrasadas, até porque põem em causa importantes interesses económicos de agentes públicos e privados moçambicanos cujos objectivos se confundem com os dos investidores estrangeiros para quem os fins justificam os meios e que partilham, sistematicamente, as mesmas limitações culturais.
Há aqui, obviamente, uma relação intima entre tecnologia e cultura e entre as escolhas tecnológicas e as opções éticas.
Naturalmente a hipótese de que Moçambique poderá vir a ser um país com amplas reservas exploráveis de matérias primas e recursos minerais e hidrocarbonetos atraiu já um contingente importante de técnicos e vendedores de tecnologia e materiais, equipamentos e mão de obra, sem trabalho nos seus países de origem dada a crise económica na Europa e nos EUA.
Esta imigração, que tem muito de positivo pois oferece ao país um contingente de especialistas, técnicos e trabalhadores com larga experiencia e cuja formação foi suportada por outras economias, contem também elementos negativos, que nem sempre são imediatamente aparentes.
Para lá dos desvios éticos, imprevisíveis e aleatórios, sempre possíveis em qualquer exercício profissional mas aqui facilitados pela escassez de códigos de práticas profissionais e pela reduzida capacidade de fiscalização por parte das instituições públicas, acresce o risco da transposição directa de tecnologias e de práticas alheias ao contexto físico, económico, tecnológico e cultural do país com as consequências já apontadas.
O vector económico é, seguramente um dos factores mais decisivos na evolução da expressão arquitectónica do país nos próximos anos.
A recente expansão da atividade especulativa imobiliária e da construção de equipamentos públicos e privados, incluindo o parque residencial a todos os níveis, produziu nos últimos anos um aumento significativo da oferta de meios tecnológicos e na demanda de mão de obra a todos os níveis de qualificação.
A influência desta atividade na absorção de mão de obra local, na criação de novas industrias e na expansão de industrias existentes tem sido considerável e com impactos seguramente positivos na economia nacional.
Por outro lado a elevação dos standards e o desequilíbrio entre a oferta e a procura têm contribuído para uma elevação dos custos da construção que afecta um larga faixa de potenciais promotores incluindo o pequeno construtor e as famílias mais necessitadas de habitação.
O factor económico mais decisivo para a qualidade da arquitectura é, indiscutivelmente, o aumento exponencial da construção especulativa.
É por aí e para aí que chegam os operadores para fazer lucros tão rápidos quanto possível, maximizando o diferencial entre o investido e o recolhido.
Curiosamente, após um interregno de quase de trinta anos, todas as razões para a nacionalização do parque imobiliário voltam a fazer sentido.
Mas fazem-no, apenas, pelo vácuo da intervenção das autoridades públicas que nem tentam, nem sabem controlar os aspectos técnicos ou de segurança dos edifícios e se alheiam das suas responsabilidades, conscientes ou não e subordinados a decisores a quem devem obedecer permitindo o abuso das mais elementares regras urbanísticos.
Moçambique tornou-se assim, quase do dia para a noite, no paraíso das mafias europeias e asiáticas, bem treinadas nos seus próprios países para explorar o cliente anónimo, sempre incauto e indefeso perante uma máquina de exploração montada com a participação de agentes nacionais, altamente colocados no ambiente financeiro, governativo e político.
A qualidade da arquitectura é, obviamente, o último dos parâmetros que pode interessar ao especulador ou ... mais simpaticamente... ao investidor.
De facto o que lhe interessa, antes de tudo, é pensar que pode começar por poupar no projecto para, depois, impor ao projectista toda a extensão da sua falta de escrúpulos no que diz respeito à qualidade da construção, dos equipamentos, da economia na manutenção, na prestação energética e na qualidade dos materiais de construção empregues.
Num país sem normas de qualidade impostas e controladas é fácil toma-lo como o paraíso dos promotores sem escrúpulos.
Parece-nos óbvio, portanto, o nexo de dependência entre o vector económico e a qualidade da arquitectura.
Também parece óbvio que num país que em trinta anos passou de meia dúzia de arquitetos para algumas centenas a acumulação de experiencia é, ainda, muito reduzida e, em muitos casos, deformada pelo ambiente atrás descrito.
De facto confunde-se facilmente a acumulação de erros com a aquisição de experiencia, com funestas consequências em todas as vertentes da actividade do projecto, fiscalização, construção e controle de edifícios e infra-estruturas.
O vector ambiental é crucial para uma análise abrangente e conclusiva sobre as condições de evolução da nossa arquitetura no futuro imediato e mais longínquo.
Neste âmbito, e para lá das falhas no sistema educativo, existe um vácuo legislativo que regule as componentes ambientais dos projetos e, consequentemente, da capacidade de controle dos projetos neste aspecto.
A legislação ambiental existente, mesmo a mais recente, está desatualizada e deveria ser objecto de uma revisão por especialistas dos vários aspectos a considerar nos projetos em termos de salvaguarda da sustentabilidade ambiental e de segurança, que é um aspecto particular da correta prestação ambiental.
Naturalmente que não se pode pensar em rever a legislação sem simultaneamente se criarem as condições que assegurem o cumprimento dos regulamentos, como é a presente realidade mesmo nos centros mais preparados.
Este vector é também condicionado pelas carências a nível curricular dos cursos de engenharia, arquitetura, ciências naturais e física.
Não há, por exemplo, em todo o país, um único curso de física das construções nem, especificamente, sobre sustentabilidade ambiental, focalizado cientificamente sobre os impactos ambientais dos edifícios e das infraestruturas.
Para que possa ter algum impacto, esta matéria deveria ser objecto de ensino e educação, desde a escola primária, onde a sensibilidade aos problemas ambientais do planeta e do país deveria ser essencial na formação dos alunos.
Com a acelerada urbanização perde-se também, aceleradamente, o conhecimento empírico que o camponês possui na sua relação com o meio ambiente, o que vem a revelar-se mais direta e negativamente em formas de ocupação espontânea de zonas urbanas totalmente desadequadas aos assentamentos humanos.
Não abordaremos aqui, por sair do âmbito direto desta análise, o caso das grandes infraestruturas como as barragens por exemplo, que são, muitas vezes, objecto de decisões à revelia dos estudos de impacto ambiental, para proteção de interesses financeiros e geoestratégicos a coberto de exercícios de retórica e demagogia política, mais facilmente credíveis por uma população sem preparação e educação ambiental.
O vector legal é uma das condicionantes mais significativas na evolução da arquitetura em Moçambique.
Dois aspectos principais devem ser considerados neste âmbito:
a regulamentação sobre as edificações urbanas e o processo de seleção de projetistas e de projetos para os equipamentos públicos e privados.
O primeiro aspecto tem a ver com a indisciplina e ambiguidade da regulamentação municipal e nacional em relação quer quanto às regras urbanísticas a aplicar quer quanto às formas de escrutínio e aprovação dos projetos de construção.
O segundo aspecto tem a ver com as limitações e atropelos da regulamentação sobre o sistema de fornecimentos ao estado.
Para uma análise abrangente da situação no que diz respeito aos processos de aprovação municipal, distrital, ou mesmo ministerial, dos projetos de edifícios basta-nos rever o que se passa em Maputo, dado que a situação nas outras autarquias e níveis administrativos só pode ser ainda mais difícil pois as limitações de capacidade técnica para apreciação dos projtos são, seguramente, ainda mais sérias.
O caso do Maputo é, portanto, paradigmático e, por ser a autarquia onde mais se constrói no país, é onde a gravidade da situação é mais patente e de mais graves consequências.
O que se passa na realidade é que não há ao dispor dos técnicos que devem aprovar ou reprovar os projetos um nível mínimo de clareza quanto à regulamentação a aplicar dado que nem os técnicos das diversas especialidades da construção, nem os juristas dispõem de diretivas claras sobre quais, de entre diversos regulamentos, alguns ainda da época colonial, devem fundamentar as decisões a tomar.
Mais grave ainda é o facto de que os projetistas não são informados sobre quais os regulamentos a observar na execução dos projetos ficando sujeitos a critérios arbitrários e sem fundamentação legal.
A esta situação associa-se o facto de que, em muitos casos, à autoridade técnica que tenta obedecer às regras urbanísticas aplicáveis, se sobrepõe a autoridade administrativa, tecnicamente ignorante mas com o poder de decidir em defesa de interesses de pessoas, entidades ou organizações, mesmo contra o parecer dos melhor informados responsáveis técnicos.
Tudo isto resulta num caos administrativo e legal que, até agora tem merecido pouca ou nenhuma atenção por parte do legislador, seja por inconsciência das suas funestas consequências, seja porque este nível de ambiguidade permite a proteção daqueles interesses.
O sistema, instituído no Maputo, do “pedido de informação prévia” não resolve nenhuma das ambiguidades e arbitrariedades da confusão regulamentar apenas ajuda os projetistas a trabalharem com mais segurança nos projetos para aprovação municipal, após conseguirem a informação positiva aos pedidos.
Este tema parece-nos ser suficientemente importante e grave para merecer uma intervenção urgente do Tribunal Administrativo, provavelmente decorrente de processo a iniciar conjuntamente pelas autarquias e Ministério das Obras Públicas e Habitação.
A outra dimensão que contribui para o abaixamento da qualidade dos projetos, nomeadamente dos projetos de equipamentos públicos é a forma como são montados os concursos públicos.
Essa montagem é deixada às secções responsáveis pelos fornecimentos ao estado que existem em todas as instituições estatais ( ministérios, empresas estatais, municípios, etc.)
Na maioria dos casos essas instituições quando necessitam de construir novas instalações para si próprias é esta a primeira e, em muitos casos, a última vez que devem construir um processo de organização e informação de um concurso de consultoria para o projeto de um edifício.
Várias são as dificuldades que vão encontrar e para as quais, quase todos as essas secções, não estão minimamente tecnicamente preparadas.
Assim o erro inicial mais corrente acontece quando se deve estabelecer um valor estimado para o projeto e para a construção, a inserir no orçamento da instituição para o ano em que o concurso deve ser lançado.
Naturalmente que a entidade administrativa (UGEA) a quem é confiado este exercício não faz a mais pequena ideia dos parâmetros a que deve obedecer esse cálculo e daí resultam, em regra, valores totalmente irrealistas.
O erro seguinte está na incapacidade generalizada dessas entidades administrativos para definir os programas funcionais, espaciais e técnicos que informem os termos de referencia para os projetos além de que, em quase todos os casos já foi escolhido um terreno muitas vezes impróprio quer em termos urbanos quer em termos das suas dimensões, situação ambiental, etc.
Finalmente, e aqui não se trata só de incapacidade técnica mas também de processos de corrupção, são constituídos júris que não têm capacidade técnica para julgar as propostas dos concorrentes e decidem por conhecimento e/ou interesses pessoais, por incapacidade de apreciação da competência técnica dos concorrentes ou pelo valor mais baixo das propostas que, em geral, são valores impossíveis de manter sem atropelos graves à qualidade dos projetos.
Não se percebe como, em quase todos os casos, o ministério responsável pela manutenção da qualidade da construção não é chamado a contribuir para a informação dos processos de concurso e para participar nos júris de seleção do concorrente vencedor.
Os resultados têm sido desastrosos, quer sob o ponto de vista técnico e estético quer sob o ponto de vista económico e de cumprimento dos prazos.
O caso agrava-se quando se trata de concursos para projetos de “chave na mão” pois, a todas as dimensões negativas apontadas, se junta também a incapacidade das instituições para julgar a qualidade dos projetos e da construção.
Uma nova dimensão se vem juntar e agravar a situação atrás descrita, só por si já grave: a atribuição de projetos sem concurso a entidades financiadoras e doadoras estrangeiras.
Por razões não esclarecidas, vemos repetidas vezes importantes obras de edifícios e infraestruturas oficiais serem entregues para elaboração dos projetos e construção a empresas estrangeiras e nacionais, sem concurso e com fiscalizações condicionadas a favor dos empreiteiros, ou mesmo sem fiscalização.
Isto é uma situação gravíssima que tem conduzido a um nítido abaixamento da qualidade dos projeto e de construções importantes e significativas, até porque os projetos são executados no estrangeiro sem um conhecimento minimamente relevante das condições ambientais, sociais e culturais locais e a fiscalização, quando existe é frequentemente desautorizada pelas autoridades administrativas que se sobrepõem à autoridade técnica por razões de oportunismo político e ignorância das consequências nefastas dessa forma de proceder.
Cobrimos uma visão limitada, mas abrangente, dos factores que afectam a produção de projetos de arquitetura e da sua realização no terreno.
Demos atenção prioritária aos factores negativos pois que são aqueles que, mais imediatamente, condicionam a qualidade do ambiente construído e que portanto devem ser de atenção prioritária.
Mais difícil se torna, dentro do panorama atrás descrito, encontrar as vias de estruturação de uma evolução positiva da arquitetura em Moçambique.
Naturalmente que a primeira deverá ser encontrada no sistema de formação. Também é aqui que encontramos as primeiras dificuldades pois que, pelas razões apontadas, ainda é cedo para poder contar com um escol de formadores preparados e experientes embora, em termos formais, haja já um contingente razoável de mestrados e doutores mas que é ainda insuficiente, quer em numero quer na sua experiencia, para assegurar uma didática satisfatória.
A abertura de mais faculdades de arquitetura não tem sido baseada numa avaliação realista da disponibilidade de docentes preparados e não pode, assim, contribuir decisivamente para a elevação da qualidade dos graduados.
Por outro lado a limitação dos meios de ensino é ainda muito grande e aumenta em muito as dificuldades que os alunos enfrentam para a sua auto formação.
A criação de uma classe profissional, quase inexistente há menos de 25 anos, é um factor positivo e que trás a esperança de que, cada ano que passa, se vá desenvolvendo uma consciência difusa, mas em aprofundamento, da missão do arquiteto na sociedade moçambicana, quer como profissional quer como difusor dos valores mais básicos e mais válidos da arquitetura.
A esperança de que as iniquidades administrativas e politicas se possam ir resolvendo positivamente, com o aumento da consciência política do povo, poderá ser uma outra janela sobre um panorama futuro menos medíocre que o atual.
A imigração de técnicos qualificados e bem preparados, quer para o exercício do projeto de arquitetura, quer para a solução de todos os projetos das especialidades complementares põe à disposição de Moçambique uma riqueza de competências e uma experiencia que não seria possível acumular em tempos breves e apenas através do nosso sistema de formação e acumulação de experiência profissional.
Esta consideração é válida também no âmbito da construção civil e os seus resultados são já aparentes.
Isto não quer dizer que tudo o que chega na presente leva de imigrantes seja sempre positivo. Infelizmente há exemplos de menos competência e menos integridade mas, quanto a mim, o balanço é positivo e benéfico para o país.
Naturalmente que para muitos técnicos locais este fenómeno é perigoso pois põe em causa a sua competência e representa um novo nível de competição no acesso ao trabalho.
Curiosamente quando estes mesmos técnicos pensam em emigrar para outros países nunca se põem as mesmas questões.
Não é por se poderem avaliar as condições objectivas e subjetivas da produção arquitectónica do país que se podem derivar prognósticos seguros sobre a evolução da qualidade dessa produção.
Os vectores identificados e explorados são uma parte importante dos condicionalismos da arquitetura em Moçambique mas não são, só por si, nem todos nem contêm a chave da garantia da evolução positiva da qualidade da arquitetura.
O contacto constante com alunos das faculdades de arquitetura do país deixa-me, de alguma maneira, esperançado pois lhes reconheço um entusiasmo e um interesse que são a base indispensável a uma arquitetura de qualidade.
Uma certa ingenuidade, provavelmente resultado da distância aos centros de propaganda das últimas modas e a noção de que Moçambique não tem que, necessariamente, estar na primeira linha das aventuras formais e tecnológicas trás, inevitavelmente, uma atitude menos arrogante e menos encadeada pelas personalidades “heroicas” do submundo da pseudocultura arquitectónica mundial, que só pode ser positiva.
O maior problema, contudo, continua a ser a pouca oferta de experiência dos escritórios nacionais, que se alia a uma grande inconsciência das próprias limitações técnicas e a uma fraca e mal informada exigência de profissionalismo por parte dos clientes, que não têm a menor noção das responsabilidades que devem exigir aos arquitetos e consultores ao encomendar um projeto.
Estas dimensões do problema não têm solução a curto prazo.
Um ambiente profissional saudável e feito de competências e experiência só pode estruturar-se a partir de uma sociedade intelectualmente desenvolvida, com instituições competentes e dotadas com os meios humanos e técnicos adequados.
Moçambique está a dar agora os primeiros passos na construção dessa sociedade e é nossa responsabilidade analisar, esclarecida e friamente, as condições em que esses primeiros passos são tomados.
Uma análise destas implica considerações que tocam aspectos emocionais e, por isso mesmo, é desconfortável para muitas pessoas diretamente envolvidas no processo.
Não foi nossa intenção abrir o caminho a criticas pessoais ou mesmo, especificamente, a instituições governamentais ou de qualquer outra natureza, mas sim propor as bases de um debate que, a nosso ver é não só urgente mas indispensável a uma estruturação saudável do ambiente da construção civil, e implicitamente da arquitetura, no nosso país.
JOSÉ FORJAZ
2014