O PROBLEMA DO PATRIMÓNIO HISTÓRICO EM MOÇAMBIQUE
A história dos povos só tem valor quando os povos a assumem como sua ou quando lhe compreendem o significado.
No caso dos povos colonisados a historia do colonisador, e os testemunhos da sua presença e da sua cultura material, não são necessária e pacificamente assumidos como valores a preservar e a respeitar, mesmo quando se lhes perceba um valor económico e comercial.
Naquela situação contam não só os aspectos de ordem politica, emocional e psicosocial mas também a incapacidade de perceber valores de ordem estética, sobretudo quando se trate de testemunhos e de monumentos cuja idade torna aparente uma vetustez cuja presença não agrada e é tomada como falta de valor.
No caso de Moçambique, por exemplo, essas preocupações pertencem á ordem dos problemas chamados da “cultura” que, no panorama das carencias generalisadas em todos os sectores vitais da vida nacional, são sistemáticamente relegados para planos de menor importancia ou mesmo sistemáticamente esquecidos e afastados.
É então perfeitamente natural que se dê prioridade e atenção á preservação e valorização das manifestações culturais endógenas, que todos sentem e entendem como suas, de que todos se sentem orgulhosos e com que todos vibram em perfeita sintonia de valores emocionais.
Os esforços investidos na organisação dos festivais de canto e dança, na promoção da presenta dos grupos culturais em eventos nacionais ou no estrangeiro, por exemplo, são a prova de que a cultura local viva é respeitada, acarinhada e protegida, dentro dos limites do possível, e mobiliza facilmente as boas vontades do povo e dos políticos.
O mesmo não se dá quando se trata de valores patrimoniais tangiveis e históricos, mesmo que se trate de valores da cultura local, mas do dominio arqueológico ou sem significado e valor mais imediato para os vivos.
O patrimonio contruido urbano é um caso particular.
Reconhecido oficialmente como valioso, em termos teóricos, na prática é abandonado ao arbítrio de uma administração quase sempre sem a noção dos reais valores históricos e estéticos em causa. Essa condição torna-o muito mais susceptivel á influencia dos investidores e especuladores imobiliários
que se não compadecem com quaisquer dimensões de ordem cultural, histórica ou ambiental e que, como em qualquer outro país, se aproveitam da vulnerabilidade cultural ou material da administração pública para imporem esquemas em que a última consideração a ter é pelo valor histórico, urbanistico ou ambiental do caso ou da situação em causa.
Por outro lado o problema do património construido tem sido sempre equacionado como um problema cultural ou tecnológico e têm sido esquecido os problemas de ordem económica e de ordem legal o que tem levado sistemáticamente a situações sem saída possivel pois faltam, ou não se conseguem operacionalizar, os instrumentos legais necessários á materialização das intenções de restauro e manutenção nem os instrumentos técnico-económicos indispensáveis á definição das intervenções necessárias e indispensáveis.
Qualquer intervenção de preservação no património construido levanta, no nosso caso, as seguintes ordens de problemas:
- problemas de ordem legal pois não existem mecanismos de expropriação para fins de preservação;
- problemas de ordem económica pois não existe a capacidade de promover as intervenções necessárias á preservação das estruturas classificadas, mesmo naqueles casos que não implicam expropriação;
- problemas de ordem cultural pois não existe a capacidade para fazer a definição do tipo, da extensão e da qualidade da intervenção a operar;
- problemas de ordem técnica pois não se mobiliza a capacidade existente para executar as intervenções com proficiência técnica quer ao nivel do projecto quer ao nivel da execução quer ao nivel da fiscalização;
- problemas de ordem social pois a recuperação de elementos classificados do património construido implica, na maioria dos casos, operações de realojamento sem garantia de uma justa compensação;
Em face a este panorama, que não se confina ou se esgota no ambito do património histórico construido, vão-se manifestando os interesses de parceiros internacionais preocupados com uma situação de perda paulatina e irreparável dum património que é, de facto, de valor universal e insubstituivel.
Interessa agora analisar as razões da manifesta falta de operacionalidade e de resultados tangiveis e concretos, como resposta a várias e repetidas ofertas de apoio neste campo e, mesmo naqueles casos em que se concretizaram intervenções, a razão do progressivo retorno a situações de renovada degradação.
Quanto a nós estas razões devem-se sistemáticamente ás seguintes causas;
- a priorização do interesse pelos aspectos estéticos e históricos, contra o background cultural já referido;
- a falta de consideração dos aspectos socio-culturais do meio;
- a falta de consideração do quadro legal da intervenção;
a falta de consideração da dimensão do real valor da intervenção e dos encargos de manutenção uma vez executada a obra;
- a ambiguidade ou mesmo a ausencia do estabelecimento de um cenário plausivel e estruturado económica e técnicamente e em termos de recursos humanos, para o uso, operação e manutenção da estrutura reconstruida ou restaurada;
- a inoperacionalidade dos mecanismos institucionais estabelecidos;
O caso de Moçambique poderia ser considerado particularmente significativo.
O país dispõe de uma estrutura legal desenvolvida e, nas ocasiões apropriadas, afirma professar um grande interesse official pelos problemas do património.
Na Africa sub sahariana é um dos poucos paízes que conseguiu classificar um sitio como “património mundial”: a Ilha de Moçambique.
Criou e mantem, ao nivel de ministério, orgãos responsáveis pela cultura e pelo ambiente. Criou e mantem um orgão consultivo, o Conselho Nacional do Património Cultural, que deve ser houvido e se pronuncia e sobre questões de classificação, preservação e politica de criação de novos monumentose sitios do património.
Classificou já um grande numero de sítios e conjuntos monumentais como património cultural sujeito a regras de intervenção clara e legalmente definidas.
Parece portanto ser de esperar uma situação de disciplina de conservação saudável e exemplar.
Não é, esse, o caso.
Três exemplos julgo que poderão dar a prova de inoperância dos mecanismos estabelecidos e da incapacidade dos mecanismos de apoio e ajuda externos para conseguir superar essa lamentável condição.
Podemos, para começar tomar o caso da “Baixa”, ou centro histórico do Maputo, capital macrocéfala do país.
Mesmo antes da criação do primeiro ministério da cultura, quando o orgão de tutela era ainda uma secretaria de estado, nos fins dos anos setenta, uma equipa técnica dirigida por um arquitecto português apaixonado por esta ordem de problemas, produziu um estudo de classificação da zona urbana e do estado e estatuto de cada edidicio dentro da mesma zona.
Esse estudo foi bem aceite pelo então Secretário de Estado e proposto como zona urbana de intervenção controlada pelo orgão central do governo, isto é com poderes discriminatórios superiores ao do então Conselho Executivo da cidade, agora Conselho Municipal, necessitando de parecer do Conselho Nacional do Património Cultural para a aprovação de qualquer projecto de intervenção sobre qualquer edificio ou conjunto urbano ou espaço livre desse conjunto urbano.
Nos últimos vinte anos podem contam-se pelos dedos da mão quantos pareceres foram pedidos, e ainda menos quantos pareceres foram seguidos, sobre várias intervenções sobre aquele património classificado.
O conjunto da Baixa do Maputo continua a desagregar-se e a ser brutalizado por intervenções insensiveis ao contexto e á escala urbana, mesmo contra parecer do Conselho Nacional do Património Cultural, quando este, em raras ocasiões, foi pedido pelo ministério de tutela.
Mais grave ainda a Baixa do Maputo continua a ser preterida pelo estado como zona de desenvolvimento preferencial, que seria a única forma da a conservar e de a desenvolver através de uma atenção renovada ao estado das suas infra estruturas e á imposição, possivel dentro da legalidade existente, da renovação dos edificios de propriedade privada e dos edificios que são património do estado.
Pelo contrario permitiu-se a construção de toda uma nova zona, junto á Baixa, sem dispor de infra estruturas adequadas, relegando o centro histórico para a situação de abandono presente, o que afecta todo o panorama e o funcionamento da cidade.
Estamos portanto em frente a duas situações negativamente complementares: a falta de controle e a falta de iniciativa.
O segundo caso emblemático é o da Ilha de Moçambique.
Uma pequena ilha com cerca de 3 quilometro por trezentos metros esta ilha, a cerca de 4 quilómetros da costa e a ela ligada por uma ponte desde o fim dos anos sessenta, foi colonisada pelos portugueses desde os fins do século XVI tendo-se tornado, até aos fins do século XIX o centro administrativo da colónia.
Ao longo destes três séculos a pequena cidade foi-se consolidando com um rico património militar, civil e religioso, desproporcionado com a sua dimensão fisica.
A miscegenação de uma forte tradição swaili com as importações culturais indo portuguesas, mediterrânicas e atlânticas da cultura construtiva portuguesa produziu uma situação de enorme fascínio que bem merece a classificação, que lhe conferiu a UNESCO, de Património Mundial da Humanidade, á cerca de 15 anos.
Mas esta pequena cidade, fortemente urbana na sua densidade, função e posição no território, é também um dos exemplos mais perfeitos da dualidade da topologia urbana colonial com uma separação total entre os espaços e serviços dos colonos, daqueles onde se alojava a população indigena, relegada para o fundo da depressão criada pela extração da pedra coralina para a cidade dos colonos.
Nessa outra cidade, a dos servos, já a miscegenação das formas de construir e dos estilos se não materializa e fica patente apenas a construção tradicional africana, com alguns elementos importados mas sem efeitos definitivos na melhoria das condições da habitação da comunidade indigena.
Razões históricas determinaram o quase total abandono da cidade colonial. Primeiro a perda da sua importancia administrativa com a transposição da capital do território para uma posição geográfica mais estratégica; depois a perda da sua importância como porto de mar que servia uma larga faixa do Norte de Moçambique, com a bertura do magnifico porto de Nacala, um pouco mais ao Norte; finalmente com a independencia nacional quando a pequena minoria da população branca abandonou, quase por completo, a Ilha, por insegurança quanto ao futuro do novo pais independente, e socialista.
Estava-se em 1975-76.
São passados cerca de trinta anos em que se evoluiu de uma atitude oficial de grande sensibilidade aos valores a preservar, para uma posição de quase total insensibilidade e mesmo de recusa ao reconhecimento da importancia da Ilha para, finalmente, uma situação de demagógico interesse motivado e estimulado por pressões externas e pela percepção do valor especulativo do património histórico.
Durante estes trinta anos a história da degradação deste património, agora da Humanidade, que é a Ilha de Moçambique, pode tomar-se como uma enciclopedia dos erros táticos e politicos das variadissimas acções e intenções de intervenção para a sua recuperação quer em termos fisicos, quer em termos sociais, quer em termos económicos.
A Ilha tem agora mais de 15000 habitantes, mais pobres do que nunca, com maiores dificuldades de acesso a serviços básicos essenciais, e sem perspectivas de melhoria da sua condição.
Desde ha 7 anos que o seu estatuto é de autarquia local, isto é, com autonomia politica e administrativa, elegendo um Presidente do municipio e uma Assembleia da Cidade e com um certo grau de autonomia financeira, pois depende, ainda, em cerca de 50% do Orçamento Geral do Estado.
Entretanto construiu-se um aparelho legal e tecnico-administrativo bastante desenvolvido na letra e na forma, mas que se tem revelado ineficiente e incapaz de fazer face á degradação continua e agravada da Ilha.
Entretanto sucedem-se as missões de assistencia e cooperação multi e bi-laterais, os projectos de cooperação e mesmo alguns projectos de intervenção realizados com mais ou menos sucesso.
A grande maioria desses projectos são uma repetição de projectos anteriores, que não fizeram mais do que aproveitar as análises e as estratégias já propostas pelos orgãos e consultores nacionais, na maioria dos casos sem que sejam mencionadas as fontes ou autores.
Gastam-se preciosos recursos financeiros para, supostamente, se definirem projectos financiáveis por agencias de cooperação internacional e mecanismos de financiamento multilateral.
Os “estudos” e “relatórios” começaram logo depois da Independência com a vinda de especialistas estrangeiros que nos vieram dizer o que já sabiamos: que a Ilha é um património precioso, que as suas realidades fisicas, sociais, económicas e culturais são as que tão bem conhecemos e que sera necessário construir uma estratégia de restauro da base económica e social da Ilha que viabilize e justifique a recuperação do património construido.
Todos esses relatórios foram elaborados exclusivamente sobre informações recolhidas, trabalhadas e tratadas por técnicos e cientistas nacionais e nenhum apresenta qualquer estratégia articulada e viável para cumprir os objectivos que se propunha atingir.
O mais extraordinário, inútil e caro destes documentos foi elaborado pela UNESCO, sob a coordenção do Sr. Sylvio Mutal, que implicou a vinda a Moçambique de várias equipas de técnicos e cientistas e que, ao fim de quase dois anos de trabalho, apresentou, em 1998, um “Programme for Sustainable Human Development and Integral Conservation “ que deveria servir como um documento guia para cumprimento desses objectivos…
Passados sete anos e inumeras conferencias de doadores, com enormes gastos em viagens, hoteis, per diems e honoraria, não se materializou, na Ilha, um só dos projectos previstos!
Mesmo quando os doadores já atribuiram os fundos para um projecto, como é o caso do restauro e adaptação da Fortaleza, o projecto encontra-se, ainda, paralizado, passado mais de um ano da concessão do financiamento, porque os termos de referencia elaborados pelo consultor são manifestamente incompletos e irrealistas técnica e financeiramente.
Por outro lado as poucas intervenções que se levaram a efeito como o restauro da Capela de Nossa Senhora do Baluarte, a estrutura da cobertura do Hospital e a casa do Bispo, hoje casa de hóspedes do governo, passados poucos anos, apresentam já sinais de degradação evidente devido á insensibilidade e á incapacidade das autoridades locais para reconhecer a sua importancia ou possivel utilidade.
A situação actual da Ilha é a da realização de uma série de intervenções de restauro e alterações ao património em mãos de privados, com mais ou menos mérito técnico-histórico-artistico, financiadas exclusivamente por capitais privados.
O projecto governamental de rehabilitação da ponte arrasta-se há mais de 10 anos, tendo começado, há poucos mezes, uma primeira fase de reparações urgentes para se evitar o colapso da estrutura, mas que não resolve o problema definitivamente.
Poderiamos indicar outras acções, como a do abastecimento de água á Ilha, com fundos da cooperação suiça e britânica, que continua a degradar-se nas suas várias componentes, possivelmente porque foi projectado e executado sem um estudo realistico de viabilidade técnico económica tendo-se revelado insustentável pois não há sequer consumidores suficientes para cobrir as despezas de operação e manutenção, nem capacidade técnica para a sua gestão comercial e operacional.
O caso da Ilha é um caso fundamental pois reune e acumula todas as dimensões do problema que aqui estamos a tratar.
O terceiro caso que propomos considerar é o da ilha do Ibo.
Trata-se de uma pequena ilha do arquipélago das Quirimbas, um conjunto linear de 32 ilhas no Norte de Moçambique, na Provincia de Cabo Delgado.
A ilha do Ibo tem cerca de 15 quilometros quadrados, sendo a maior do arquipélago, a cerca de 400 metros da costa.
Rodeada por mangais inscreve-se num circulo com cerca de 8000 metros de diametro. Com um clima tropical sub-humido a ilha está exposta ás monções anuais e a ciclones frequentes.
Na ponta nordeste da ilha situa-se a Vila do Ibo fundado pela coroa portuguesa nos finais do século XVIII.
Por meados do séc.XIX a Vila teria uma população estimada em cerca de 5400 pessoas sendo a população actual da ordem das 3500 pessoas.
A história da Ilha regista elementos patrimoniais desde os finais do séc.XVI ( 1580) até á actualidade.
A ilha, e sobretudo a Vila, tem uma dinâmica histórica paralela á da Ilha de Moçambique com a sua progressiva perda de importancia administrativa e comercial a partir do inicio do século XX.
A situação actual é semelhante á da Ilha de Moçambique com a diferença que não tem sido objecto do mesmo interesse e atenção, por ser mais remota e de dificil acesso.
E no entanto o seu interesse e fascinio não são menores e, em muitos aspectos, poderá até ter um potencial maior para um desenvolvimento mais rico e variado.
O Ibo faz parte da Reserva Natural das Quirimbas, que tem uma importante componente continental.
Esta classificação impõe-lhe regras bem precisas mas que, como habitualmente, estão já a ser violadas, provávelmente por puro desconhecimento e, ou por incompreensão da administração do Distrito, a quem não é sequer distribuido o Boletim da República.
O património cultural da ilha e Vila do Ibo é constituido por um núcleo urbano de valor arquitectónico menor, se considerado edificio a edificio, mas muito especial quando visto como conjunto.
Alguns elementos histórico-monumentais têm um grande valor iconográfico como casos únicos na geografia das construções militares do século XVIII e XIX. A tipologia arquitectónica é também de grande interesse para a construção de uma identidade especifica das ricas miscigenações expressivas que caracterizam a arquitectura erudita da costa leste Africana.
O património cultural do Ibo é muito mais vasto e rico que apenas o da sua dimensão urbana, arquitectónica e monumental.
Os povos que se fixaram na pequena ilha desenvolveram tradições antigas do artesanato e da culinária, da produção agricola e do tratamento desses produtos que definem aquela geografia e aquele grupo humano como um caso único e representativo da miscegenação cultural que abrange a costa leste do Indico e junta o melhor do africano, do indiano e do europeu.
Conceber qualquer intervenção de salvaguarda do património sem a atenção devida a estas dimensões, tão ricas e necessarias á economia da ilha, é um erro imperdoável e deixa de fóra o que tem talvez maior significado emocional e potencialmente económico para a vida das pessoas da ilha.
O trabalho da joalharia da prata e do ouro, a antiga tradição do trabalho do ferro forjado, a carpintaria de inspiração swaili e indo portuguesa, a cultura do café, a seca e a fumagem do peixe e dos vegetais, as lendas e a história oral, a dança e as receitas de beleza feminina, a farmacopeia que utiliza as plantas medicinais da terra, tudo faz parte de um património que não deve ser considerado isoladamente mas apreciado e valorisado como o verdadeiro espirito do lugar e re proposto a uma nova sociedade que se deve sensibilizar para esses valores ancestrais com tantas qualidades insubstituiveis.
O que se diz aqui em relação á ilha e á Vila do Ibo pode e deve ser considerado, com as mesmas valencias, para a Ilha de Moçambique e para todos os casos em que a revalorização de um conjunto urbano histórico e monumental implica uma acção de reconstrução do tecido e da vida social.
A nossa experiencia com uma entidade privada que se propõe investir na reconstrução de toda a ilha e da Vila é a de que ainda não conseguimos despertar-lhe esta sensibilidade e a nossa cooperação se resumui, até agora, á elaboração de um plano director para a ilha que, naturalmente trata exclusivamente das suas dimensões fisicas e infra estruturais.
Toda a nossa mobilisação para a recuperação da estrutura socio económica da população, com base no seu potencial cultural e produtivo falhou até agora, com inevitáveis consequencias sob o ponto de vista da adesão das pessoas á ideia de uma recuperação dos edificios, que as deixa de fóra e apenas marginalmente ocupados por um hipotético sector turistico, necessáriamente limitado e exclusivo.
Mais grave é a situação quanto seria irrisória a soma a investir inicialmente para motivar uma séria de pequenos projectos a desenvolver com a população local, que assim se sentiria envolvida no projecto, á escala mais vasta, e poderia dar um contributo indispensável á necessária e obrigatória auto reconstrução da Vila, única possibilidade para efectivar essa intenção.
Três casos que apresentam dimensões diversas do mesmo problema.
Como compreender essas dimensões e considerá-las para a construção de estratégias seguras para a salvaguarda e o aproveitamento do património cultural nos nossos países?
Uma primeira reflexão, que nos parece evidente, é a de que não são praticáveis projectos dependentes, para a sua execução, operação e manutenção, da presença esporádica de técnicos ou coordenadores estrangeiros.
O corolário desta primeira reflexão é o de que os projectos devem ser sempre identificados e construidos pelos e com os residents, contando com as suas limitações e com as suas estruturas administrativas e técnicas, que serão aquelas que, em ultima análise, serão responsabilizadas pelos resultados das intervenções.
A segunda reflexão, identicamente importante, é a de que, na condição de carências básicas dos nossos países, e particularmente nos meios urbanos, a importancia de alguns edificios e elementos da paisagem urbana ou natural é, para a maioria da população, muito secundária em relação ás suas outras preocupações, mais imediatas e vitais.
Nestas condições a importancia de acções de valorização do património passa necessáriamente pala sua inserção em programas de melhoramento da qualidade de vida da população local.
Este aspecto é particularmente relevante em situações onde o que conta é o valor do conjunto urbano pois que o impacto da intervenção é mais abrangente.
A terceira reflexão decorre naturalmente das duas primeiras e tem a ver com as seguintes condições, sine qua non, para o sucesso de qualquer projecto:
- o projecto deve ser exequivel com os recursos locais, ou pelo menos com a máxima incorporação de capacidade local, e deve prever a formação de capacidades para a operação e manutenção das estruturas recuperadas. Isto quer dizer que sem a garantia da criação institucional dos postos de trabalho para a futura operação e manutenção das estruturas recuperadas, não se deveria sequer arrancar com o trabalho de recuperação.
- A administração das operações de recuperação deve ser sempre da responsabilidade local, assessorada com a capacidade especialisada necessária e que deve responder pela boa gestão dos meios disponibilizados.
- A formulação e a preparação dos projectos técnicos deve ser da responsabilidade de técnicos locais assessorados, quando necessário, por especialistas das diversas disciplinas em falta no meio técnico local. O seu conhecimento da realidade e das práticas e
potenciais locais é essencial para que se garanta o
sucesso do projecto atempadamente e dentro do
orçamento previsto.
Uma reflexão final, que se nos oferece fazer, reconsidera as raizes do problema:
como se podem mobilizar a vontade politica e estimular a sensibilidade da população para o reconhecimento do valor e da importância do património a preservar e como desenvolver a consciência das vantagens que o seu restauro e utilização têm sob o ponto de vista cultural, social e económico?
Não há, em nossa opinião uma chave mágica que nos abra o segredo destas questões.
Parece-nos que a atitude correcta deve ser a de considerar cada caso e cada situação pelo seu mérito próprio e nas suas condições especificas, e não arrancar com qualquer intervenção sem primeiro:
- garantir que o projecto faz parte de uma estratégia geral de recuperação do tecido social e da sua base economica;
- envolver na definição do projecto a população local
afectada e a beneficiar directamente com o projecto
- identificar os responsáveis pela manutenção das estruturas a recuperar e assegurar que estão criadas as condições para essa manutenção:
- assegurar a qualidade técnico-artistica dos projectos e a sua viabilidade económica e envolver na sua elaboração o máximo de capacidades locais;
- criar os mecanismos de fiscalização da execução dos projectos sob os aspectos técnicos e financeiros;
- assegurar o cumprimento das fases posteriores (operação e manutenção);
Sem que estejam asseguradas todas estas condições não se pode esperar que qualquer projecto possa resultar com sucesso.
O segredo é o de conseguir que todas essas condições estejam asseguradas á partida.
Para esta questão não há respostas prontas e generalisáveis dentro das nossas condições culturais, sociais e económicas, como foi afirmado no inicio deste ensaio.
Parece-nos, no entanto que a prática corrente tem dado resultados negativos e que a alternativa que se propõe não implica riscos adicionais e garante mecanismos de execução e controle mais efectivos.
JOSÉ FORJAZ
2005