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ANTÓNIO QUADROS: EU E O POVO

Nota à segunda edição de “Eu, o Povo”

Recordando António Quadros

Em princípios de 1975 o António mais o Roxo Leão mais o Pedro Alcântara mais o João Salomão mais o João Mosca, mais eu fomos encarregados pelo então ministro das Obras Púbicas do governo de transição Alcântara Santos, de constituirmo-nos em brigada de salvação da cidade de Tete, que estava sem água, sem luz e sem as outras necessidades mais básicas de qualquer cidade. Levávamos credenciais que nos davam amplos poderes, e mais poderes obtivemos da Frelimo e Governador da Província, a quem nos apresentámos à chegada. “Eu, o Povo” nasceu dessa brigada fazedora de milagres tais como dar água à cidade, projetar um novo bairro, um novo hospital e outras tantas coisas, em menos de dez dias. O povo era, então ainda, uma entidade concreta, a revolução estava no forno e o futuro era ainda possível para todos. Da nossa visita à aldeia da Chipera saíram os canhões da pocilga e o povo percebeu que a história tinha valores que vale a pena aprender e considerar, que que não era necessariamente mau tudo o que os colonialistas tinham feito mas sim a forma como dividiam os proventos e benefícios do trabalho do povo.
MUTIMATI é o carneiro de água, uma máquina milagrosa que trás água de baixo para cima sem precisar de diesel ou de eletricidade ou de feijão para alimentar os braços que a devem carregar.
BARNABÉ era um canito benfazejo, lá de casa do António, esperto e simpático que a todos conquistava.
JOÃO o filho, mas também um dos amigos naquele momento raro de pura generosidade e inocente esperança.
A ideia era dar voz a todos os camaradas (...que ainda os havia...) que na confusão da línguas e do combate se não conseguiam exprimir naquela, única, que todos deviam usar para se compreenderem uns aos outros.
MUTIMATI Barnabé João seria o máximo divisor comum de todo o sofrimento da guerra e de toda a esperança da paz. Seria a voz de todos os momentos e de todos os guerrilheiros. De toda a poesia do sofrimento e de tudo o que há de sofrimento na poesia. Seria a cartilha maternal da revolução, das ideias e das técnicas ao serviço do povo e pelo povo. Seria a foice e o martelo poéticos com que se constroem ideias e países nos momentos em que a poesia só é literatura depois de ser ferramenta ideológica.
Como disse o António: ...“o povo moçambicano é o seu autor”. Mas seria isto uma arrogância ou, pelo contrário, ma generosa sintonia com o povo, essa entidade sem corpo que se corporiza nessa sintonia?
Seria talvez, e porventura também, a cristalização dum português reinventado em cada palavra, que reveste novas e outras dimensões humanas e poéticas?
Seria, finalmente, a realização do que, à posteriori, afirmou na “Inclusão e dedicatória” de O Povo é nós, antecipadamente, mais atual agora do que então: “Como autor, não tenho voz própria. Falo por vozes emprestadas”.
“Eu, o Povo” é o que o António aspirava que fosse: a obra sem autor, de que todos o somos e alguns o fomos, naquele ano de “1975 – Ano da independência” e do século que, para esses alguns, ainda hoje é o século da Independência. Para outros foi apenas um prelúdio, pré lúdico, dos que viriam a ser “ o povo é nós”, da rapidamente assumida e transconsciente tomada do poder que caracteriza os que, tomado o poder, o usam para se empoderar.
Mas é também um prelúdio a um pecado de ignorância, um dos muitos que o levaram a escrever um pequeno inédito, com a mesma visão desantolhada que torna, quem a tem, num sofredor imparavelmente criativo.

PALAVRA DE ORDEM: MATAR A ÁRVORE

Campo de jugar a bola,
Machamba de fraca espiga
Eis as palavras de ouro!

Desde a Machava á Matola
A árvore e inimiga
E aqui tem seu matadouro

Num futuro já de luto
Com sede, fome e sol quente
Buscaremos sombra e fruto
Na estupidez do presente...

Neste poema, que me ofereceu num dia de mais uma emocionada reflexão conjunta, o mesmo espírito de um sofrimento que se esperançava escusado.
O mesmo génio que leva, apenas sete anos depois, o alter ego João Pedro Grabato Dias, a publicar a litania poética desmascarante da já então latente arrogância do poder, tão facilmente assumida pelos ex camaradas que depressa souberam teorizar as razões do seu emburguesamento emergente. É disso que o António Quadros trata nesse outro poema que lhe seguiu em 1982: “ O povo é nós”.
Fica por contar, e ficará, a saga do mistério falhado da autoria pois que o “eu”
ganhou já na história da poesia moçambicana a posição de património de património intelectual do povo moçambicano. QED.

JOSÉ FORJAZ

2008

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