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EPÍLOGO

Um desabafo à maneira de postfacio.

Olhando à volta do submundo das revistas e das monografias, das correspondências fáceis entre o pensar abstracto e suas primárias transcrições formais, tudo me parece cada vez mais próximo da parábola do rei vai nu.

De facto:

Quando se vê a sistemática promoção da irracionalidade, da anti racionalidade ou da pseudo racionalidade que consta da eleição arbitrária de um factor ou de um princípio ou de um conceito como única determinante da forma; quando se vêm materiais forçados a assumir falsamente as formas e as funções, o aspecto e a presença doutros ou de si próprios mas como travestis de si próprios; quando se vê a paródia reaccionária culturalmente provinciana e intelectualmente cobarde da cópia deslavada e incompetente do que se fez noutros tempos, noutros lugares, noutras condições; quando se vêm vendidos os sentidos das lições de 60 mil anos de saber, de experiência e de prova de validade dos princípios universais pelos 30 dinheiros da fama fácil que é a de estar na ou criar a última moda que consiste no fazer o inverso; quando quem não sabe como se juntam duas tábuas ou o que é um traço de massa dá lições sobre o processo, a maneira e a essência do fazer arquitectura; quando se vê a forma não do espaço mas do objecto como o ponto de partida para uma invenção arquitectónica e não como o resultado dum processo; quando se vêm os resultados ubíquos da incompetência, ignorância, incultura e a total insensibilidade aos valores do lugar, da economia e do grupo social; quando se vê sistematicamente confundir expediência com competência, mediocridade com eficiência e sucesso comercial com qualidade; quando se aceita colaborar, conscientemente ou não, na destruição da paisagem e da cidade pela ignorância e ambição que estão na base da especulação; quando de todas estas constatações me vem esta peregrina ideia de que o mundo afinal está mal feito e de que nós arquitectos não estamos a ajudar muito para o melhorar, talvez mesmo antes pelo contrário; quando todas estas perguntas nos afligem todos os dias e por isso para elas temos de encontrar respostas até porque, outros, discípulos desta nossa cada dia renovadamente conscia ignorância no-las exigem; então o pensar e o fazer tornam-se nas duas faces da moeda que poderemos ser se estas duas faces a validarem, a tornarem cada dia mais cotada na bolsa dos valores éticos que são aqueles, e só aqueles, com que se podem conseguir, inequivocamente, os valores estéticos.

Deste observatório onde me encontro chamado o terceiro mundo, por falta de mais perfeita expressão, há uma dimensão que nos é facilitada: a de não termos ilusões :
O mundo está realmente mal feito e somos nós, e só nós, que pela força do pensamento o podemos mudar.

Não é só que não tenhamos Veneza,, Angkor Vat ou Teotihuacan.
Nem Ise nem Selinunte.

É que onde tudo começa - no lugar e na paisagem - estes se vão inexoravelmente apagando.

É que o pouco que vamos fazendo é ainda, mal feito.

Quase sempre.

É mal feito por todas as razões que estão para trás. Mas é mal feito sobretudo porque , não havendo modelos locais válidos para os novos programas, para as novas imagens que a sociedade vai construindo para si própria, para os novos valores materiais e para as novas formas de agregação social, são adaptados, sem filtro crítico, os modelos já, muitas vezes, decadentes e impróprios, doutras sociedades, doutros climas, doutros lugares.

O nosso espírito do lugar está ainda por revelar-se. Define-se ténuamente em função das dimensões físicas do sítio e do ambiente. Não chega.

Falta-nos encontrar uma maneira própria de estar no espaço urbano, tão novo para nós.

Falta-nos o modelo, mas, mais gravemente, falta-nos a regra.
Essa regra que, também ela, se não deve copiar, não se pode adoptar à partida mas verificar no processo.

É pois de processo que se tratou aqui. E sobretudo do processo de aprendizagem. Nossa. De cada um de nós cada dia em que novas dimensões da nossa ignorância se nos revelam. Mas também se trata do conteúdo das ideias, da sua densidade da sua profundidade. Sobretudo da sua intransigência para com as elementares lealdades: ao programa, às envolvências, à materialidade dos meios e, acima de tudo, ao conteúdo poético que nos rói e nos obriga.

Dessa intransigência dignificada pode mesmo surgir um fio do processo a desenrolar ao longo das coerências conquistadas pela densidade do repensar, sempre, tudo.
Virá mesmo, arrisco, alguma força esssencial à reinvenção quotidiana de nós próprios.

Talvez até a força da invenção, da poesia da atitude que é afinal o que pode mais profundamente pode distinguir-nos.

JOSÉ FORJAZ

1996

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