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HABITABILIDADE BÁSICA

Habitabilidade básica, o tema de uma vida: uma experiência pessoal

Conferência proferida na Faculdade de Arquitectura e Planeamento Físico em Maputo, no 20º aniversário da graduação da primeira geração de arquitectos aí formados.
José Forjaz , Maputo, 16 de Novembro de 2011


A habitação, base e súmula da arquitectura
Aceito este convite para vos falar sobre o tema da habitação e da habitabilidade é por ter sido responsabilizado durante alguns anos, pelo sector da habitação em Moçambique e, mais tarde, pela formação de futuros arquitectos que pudessem vir a assumir esse problema como responsabilidade sua.
Escrevi um dia que a habitação é para o arquitecto, o que o estudo da figura humana é para o pintor ou o escultor: a base e a súmula de toda a arquitectura. Nela se equacionam e se condensam todos os problemas de todos os programas do habitat humano, tal como o corpo humano pode exprimir todos os dramas e todas as comédias do homem e contém as proporções canónicas necessárias à construção de uma entidade estética perfeita.
A habitação é a célula básica do abrigo ancestral da espécie, indispensável à sobrevivência do indivíduo e da sociedade e, como tal, tem valências que decorrem das necessidades físicas e psicológicas da pessoa e da comunidade de que ela faz parte.
A habitação é, portanto, a célula original do tecido construído, onde a sociedade resolve, e exprime, o seu ethos colectivo. Habitar é, pois, uma necessidade individual e um imperativo da comunidade.
A casa é, inevitavelmente, a expressão da personalidade do morador, da riqueza ou da pobreza material e cultural da família, mas também da civilidade da comunidade e do desenvolvimento político e material da sociedade, da inteligência da relação do homem com a natureza. A casa dá-nos a compreensão da história do lugar e de quem o habita, e habitou, através dos tempos.
Estas noções não são imediatamente claras quando se parte para uma vida dedicada à arquitectura. Talvez por isso, tenha aqui algum sentido dar-vos uma ideia do percurso percorrido desde que me dediquei à compreensão da extensão e do significado da habitação como tema essencial à da minha actividade de arquitecto.
Do encantamento à percepção da habitação como problema social
Deixo de lado episódios de uma infância e adolescência marcadas pelo interesse pela construção de modelos e criações plásticas e gráficas expressivas. Estes são só relevantes para mim, e a níveis emocionais e introspectivos, pois que explicam as razões de tão profundo e continuado interesse por este tema, que viria mais tarde a descobrir com novas e muito mais complexas valências e dimensões.
Já da Escola de Belas Artes – e que arte mais bela há que a de construir a bela casa dos outros ? – recordo o fascínio que me despertava o estudo e o deleite na apreciação dos projectos de habitação dos grandes mestres que todos admirávamos.
Entretanto as condições sociais e políticas de Portugal, onde então estudava, empurravam-nos a todos para uma contínua reflexão sobre a necessidade de uma tomada de posição em relação às condições de vida da grande maioria de um povo empobrecido e sem horizontes de esperança. Um dos aspectos mais caracterizadores dessas condições era o da inferior qualidade da habitação, quer urbana quer rural, que íamos conhecendo cada vez melhor, guiados por professores muito sensíveis a essa ordem de problemas.
Pelas mesmas razões, ainda estudante, comecei a trabalhar em habitação social, sob tutela do Professor Octávio Lixa Filgueiras, encarregado de guiar o processo de produção de projectos de habitação para a Federação das Caixas de Previdência, no Norte de Portugal. A minha tarefa era a de produzir, a curto prazo, uma série de projectos de habitações subsidiadas, com áreas e custos mínimos, para famílias em diversos contextos rurais e urbanos.
Foi uma experiência difícil mas rica de oportunidades para conhecer de perto a realidade e trabalhar em condições de extremas limitações económicas e técnicas. Daí me veio uma primeira grande lição, que mantenho como válida até hoje: a qualidade da arquitectura não deve depender do orçamento disponível.
Por essa altura também, foi-me dado participar nas actividades do Inquérito à Habitação Tradicional Portuguesa, ainda hoje mal compreendido seja por valorização errónea seja por incompreensão do seu significado político e cultural na altura em que foi feito. Para mim foi a descoberta de um mundo de relações profundas, entre as condições culturais e as formas do habitat, e a compreensão de que nem sempre erudição é cultura. Mas, sobretudo, foi a descoberta da coerência entre o espaço social e o espaço doméstico em que o valor do facto arquitectónico se realiza não como o de objecto mas como o de elemento determinante da riqueza do contexto espacial urbano ou rural.
Depois de um hiato de quatro anos de serviço militar, ainda assim rico de experiências e reflexões à volta da profissão, a minha integração numa organização de óptimo nível profissional (Atelier Conceição Silva - Maurício de Vasconcelos - Bartolomeu Costa Cabral) trouxe-me novas oportunidades de trabalho dentro do tema da habitação. A posterior estadia nos EUA para a realização de um mestrado que orientou-se para a elaboração de uma tese sobre habitação social urbana nas periferias de uma cidade africana: Lourenço Marques, a actual Maputo.
A faculdade de arquitectura da Universidade de Columbia em Nova York dispunha de um corpo docente de alto calibre a nível dos mestrados. Tive a oportunidade de encontrar três figuras decisivas na minha formação, Charles Abrams, Ervin Galantay e Eric Karlson, três profundos conhecedores dos fenómenos urbanos e dos problemas da habitação no terceiro mundo. Outros, como Mário Salvadori, enriqueceram definitivamente a minha visão e forma de analisar e tratar os problemas da tecnologia.
Fiz, ali, a descoberta das maneiras, científica e tecnicamente articuladas, de analisar o problema da habitação e de o perspectivar não como um restrito problema técnico-estético mas como um problema político e económico, antes mesmo de ser um problema espacial e urbano. Fiz também, ali, a descoberta da extraordinária e assustadora complexidade desse tema.
Os sete anos passados depois, na Suazilândia, um país à escala de uma cidade, impuseram-me um isolamento altamente responsabilizador, quer intelectual quer profissionalmente, que me levaram a assumir com mais profunda consciência uma atitude criativa, eticamente demarcada do comercialismo profissional.
Aconteceram, ali, inúmeras oportunidades para projectar habitação, a todas as escalas, dentro da dimensão diminuta do país. Mas a grande aventura começou no retorno a Moçambique, nos finais de 1974.
Ao serviço da reconstrução de um país recém independente: a criação da DNH
Chamado a participar na reconstrução do país fui “entregue” ao Ministro das Obras Públicas e Habitação (MOPH), que me integrou no Gabinete de Estudos, para onde iam aqueles de que não se sabia bem para o que poderiam servir... e onde ficávamos disponíveis para o que fosse preciso, como uma espécie de “pau para toda a colher”.
Entretanto ia tendo trabalho objectivo e profissional a fazer: o projecto da nossa embaixada em Dar-es-Salaam; a tutela do GUHARLM (Gabinete de Habitação da Região de Lourenço Marques); a participação nos trabalhos de reassentamento da população da baixa do Limpopo depois das cheias de 1976, assessorando o então Ministro Armando Guebuza, destacado para o Xai-Xai para essa tarefa; a participação na preparação das teses do Terceiro Congresso da FRELIMO; o projecto do Monumento aos Heróis Moçambicanos; a redacção de um Manual de Clima e Arquitectura; para além da participação quotidiana na organização do MOPH.
Após o Terceiro Congresso da Frelimo, em 1977, fui nomeado Director Nacional de Habitação e fiquei responsável pelo ex GUHARLM para, a partir dele, construir uma instituição que se encarregasse da ”habitação” em Moçambique: a Direcção Nacional de Habitação, ou DNH.
As reflexões feitas durante a construção das teses do Terceiro Congresso corresponderam a um período de intenso debate sobre o tema, o qual se definiu como uma posição ideológica: responsabilizou-se o Estado pela criação de condições de habitabilidade adequada em meios urbanos e pelo ordenamento do território rural por forma a racionalizar a implantação de infra-estruturas e serviços.
Na interpretação das directivas políticas e sociais para o estabelecimento de uma estratégia governamental estava implícita a incapacidade financeira, técnica e material para a produção de habitação social. Emergia como excepção a resposta às necessidades dos grupos essenciais ao desenvolvimento dos sectores sociais e produtivos: médicos, professores, responsáveis estatais, etc
A grande batalha foi, então, a de instilar, no consciente e no imaginário da direcção político-ideológica do país, a noção de que só o Estado pode, e deve, ordenar o espaço habitável. Dado o precedente colonial, o Estado deveria fazê-lo urgentemente para corrigir as assimetrias no acesso a espaço urbanizado em todo o Moçambique, impostas pelo sistema colonial fascista em todo o Moçambique.
Esta batalha, que ainda hoje continua longe de ser ganha, foi a base da organização funcional da DNH e de toda a sua filosofia de acção. O problema que enfrentámos era o de um país desértico em termos da capacidade técnica, situação agravada ainda mais pelo êxodo dos últimos arquitectos e engenheiros, provocado pela nacionalização dos prédios de rendimento e pelas limitações ao exercício liberal da profissão. No início de 1977, éramos já menos que de dez arquitectos para todo o país. Que fazer então?
A formação de quadros técnicos, o direito à habitação e o ordenamento do território
Não havia outra escolha senão a de preparar gente, aos níveis possíveis de capacidade técnica, para responder, com um mínimo de competência, nas dez províncias, ao problema do âmbito do planeamento urbano, da requalificação dos bairros informais e da implantação das construções habitacionais possíveis de realizar.
Desse período heróico devemos reconhecer e prestar homenagem aos cooperantes estrangeiros, muitos deles refugiados políticos, europeus, latino e norte americanos, africanos e asiáticos e aos técnicos de países amigos, de Cuba, Coreia do Norte, Bulgária, Chile, Brasil, Alemanha Oriental, Itália, França, Suécia, Dinamarca e também Portugal e muitos outros que foram os suportes indispensáveis da tarefa quase impossível que todos tínhamos que cumprir.
A história desse período mereceria, só por si, uma conversa de várias horas onde as tensões entre o nosso conhecimento da realidade local e as posições teóricas e as experiências importadas tomariam grande parte da análise.
Com muitas dificuldades, e alguma incompreensão, fomos estabelecendo as prioridades que nos pareciam, e que ainda hoje julgamos válidas e essenciais: formar técnicos, apoiar as cidades no planeamento do seu crescimento, começar uma tarefa global de ordenamento do território e enquadrar tecnicamente o esforço de enraizamento do conceito das aldeias comunais.
O facto de que, como Direcção Nacional de Habitação, não estávamos a fomentar ou mesmo a concentrar esforços no planeamento e na construção de habitações nunca foi perfeitamente compreendido nem aceite. Mas a discussão e confrontação política apagava-se em face das dificuldades orçamentais objectivas e incontornáveis.
O Estado não tinha, como não tem ainda hoje, capacidade económica, nem criou uma politica financeira que permitisse os investimentos necessários para, dentro do seu orçamento, começar a resolver o problema da habitação construindo habitações.
Assim foram-se produzindo pequenos conjuntos de habitações para grupos estratégicos que importava apoiar para garantir o funcionamento dos serviços essenciais à vida da população e sempre altamente insuficientes.
Por imperativos políticos tentaram-se ensaiaram-se algumas experiências, impostas a partir de conceitos importados como o da pré-fabricação pesada, ou experiências endógenas como a da construção em materiais e tecnologias tradicionais, todas sem futuro.
Na linguagem política, vinha aparecendo sempre o chavão de defendia-se que a Constituição e as conquistas da Revolução garantiam a habitação como um direito de todos os moçambicanos. Mas essa mesma linguagem garantia também o direito de todos à educação e à saúde e, em última análise, o direito a uma vida material decente, desideratos que se mantêm fora das possibilidades reais do Estado.
O que ninguém sabia, e parece não saber, é como assegurar esses direitos num país onde a massa financeira tributável e colectável é muito inferior ao orçamento do Estado. Este tem, por isso, sido suportado por donativos da comunidade internacional e, mesmo assim, não chega para cumprir os programas mínimos que se definem nos planos e orçamentos anuais.
Por outro lado, a realidade mostra que a população moçambicana sabe e pode construir a sua própria habitação com a qualidade mínima suficiente, mesmo em meios urbanos, e que a qualidade do habitat depende mais da qualidade do espaço urbano qualificado pelas infra-estruturas e serviços, do que dos edifícios habitacionais em si próprios. Isto é verdade para a grande maioria da população, e, sobretudo, para a população urbana.
Mas é também verdade que a emergência de uma classe média, com novas necessidades e exigências, menos equipada para as tarefas manuais e sem capacidade para a mobilização comunitária, traz uma nova dimensão ao problema e agrava um desfasamento crescente entre as suas necessidades e as suas capacidades.
Entretanto o âmbito e o conceito de planeamento físico e ordenamento do território foram ganhando compreensão e aceitação como uma dimensão essencial ao planeamento do desenvolvimento do país. Foi uma batalha difícil num ambiente politico onde a economia planificada era equacionada como o planeamento da economia vista como um sistema de números e cifras abstractas sem ligação efectiva com a realidade física, geográfica, ambiental, cultural e humana de Moçambique. O órgão nacional de planeamento, a Comissão Nacional do Plano, não mostrava um único mapa geográfico do país!
Da criação do Instituto Nacional de Planificação Física à criação da Faculdade de Arquitectura
Foi neste ambiente que, em 1983, foi criado o Instituto Nacional de Planificação Física dirigido por um Secretário de Estado, como resultado de uma luta árdua, e por vezes politicamente arriscada, para que aquelas dimensões do planeamento e, assim sendo, da habitação, fossem compreendidas e aceites como essenciais ao desenvolvimento integrado de Moçambique. Desse órgão foi-me dada a responsabilidade de direcção, desta vez a nível do executivo.
A sua criação deu-se numa das fases mais difíceis do período pós-independência com o agravar-se da guerra civil e com as grandes transformações no equilíbrio político internacional que levaram ao desfazer do bloco socialista e à instalação, no nosso país, de todas as patologias de um capitalismo sem controle.
O programa que a DNH tinha estabelecido e seguido desde 1977 começava a dar frutos e a implicar continuidade. A formação de técnicos a nível básico e elementar tinha já permitido equipar todas as delegações provinciais com técnicos minimamente preparados para executar directivas técnicas centrais e a formação a nível médio começava a produzir uma capacidade mínima local para intervenções de planeamento urbano. A batalha pelo reconhecimento da importância do planeamento físico parecia em vias de ser ganha.
A noção de que as áreas informais das cidades não se transformam por demolição e remoção forçada dos seus habitantes parecia começar a ser aceite, ao mesmo tempo que a construção de grandes conjuntos habitacionais continuava tão impossibilitada quanto os fundos para tal continuavam a não estar disponíveis.
Punha-se, agora, o problema da formação a nível superior, cada vez mais indispensável á solução dos problemas nacionais no campo do planeamento físico regional, urbano e arquitectónico.
Na discussão sobre qual a melhor opção: mandar os nossos estudantes para o exterior ou importar capacidade didáctica e treiná-los dentro do país, foi de decisiva importância a disponibilidade da Itália para assumir o apoio necessário à segunda opção.
Para tal, havia já a experiência do apoio dado pela cooperação italiana à DNH e ao INPF, na formação de técnicos médios de planeamento físico, o que, inevitavelmente, abria o diálogo lógico e consequente sobre o tema da formação superior.
Assim, a partir de 1984 começou o trabalho de preparação de um currículo e das condições logísticas, materiais e organizativas para a criação de uma faculdade de arquitectura, em estreita colaboração com a universidade de Roma, La Sapienza. Esta foi designada pelo governo italiano como interlocutor credenciado para este trabalho para o qual foi designado, pelo governo de Moçambique, o INPF, como contraparte moçambicana.
Em 1986, abre a Faculdade de Arquitectura e Planeamento Físico (FAPF), com um programa integrado de ordenamento espacial aos diversos níveis, que permitiria aos futuros graduados actuarem em todos esses âmbitos, nas condições de isolamento técnico que são, ainda hoje, a realidade do país.
Passados 20 anos após a graduação da primeira geração em 1991, a FAPF é, agora, auto suficiente em termos didácticos e graduou mais trezentos técnicos que preenchem os quadros do Estado, dos municípios e de empresas privadas e actuam como profissionais liberais. Entretanto um número considerável de outros moçambicanos voltou ao país após formaturas feitas no estrangeiro, abrindo a possibilidade de um debate ideológico enriquecedor do ambiente intelectual nas disciplinas de produção de espaço organizado em Moçambique.
A realidade actual é a de cerca de 350 arquitectos actuantes no país, para uma população da ordem dos 23 milhões de pessoas, o que corresponde a cerca de um arquitecto para 65.000 habitantes, ou 15 arquitectos por milhão de pessoas. Sendo manifestamente insuficiente para um ambiente urbano em expansão acelerada, este ratio é, mesmo assim, já superior ao da China, por exemplo, que é da ordem dos 8,5 arquitectos por milhão de pessoas.
A direcção da FAPF abriu novos caminhos e responsabilidades. Tratava-se agora de poder articular um programa didáctico, de investigação e de extensão onde se estabelecesse uma relação coerente entre o ensino e a prática profissional, a investigação e a extensão, por forma a enquadrar a aprendizagem académica com a intervenção directa na realidade do país.
Mais fácil foi a intenção, do que pô-la em prática. Materializar este conceito a partir de experiências muito diversas e distantes da realidade em que se pretendia actuar, e de uma praxis académica extremamente limitativa da liberdade pedagógica, cedo se revelou um obstáculo quase intransponível.
No entanto, foram-se conseguindo criar alguns mecanismos operativos, como o Centro de Estudos e Desenvolvimento do Habitat (CEDH) que, dentro das suas limitações, tem contribuído para manter a intenção daquela ligação indispensável entre ensino e extensão, a qual deveria ser, mas nem sempre é, realizada através da investigação.
Já os aspectos de investigação se revelaram mais frustrantes, dada a ausência generalizada de uma cultura de interesse pela descoberta de novas direcções científicas e por uma tendência prevalecente para um imediatismo lucrativo do valor do diploma. Mesmo assim, a produção de literatura técnica e científica pela FAPF tem tido uma expressão de interesse pedagógico, científico e profissional.
Em aspectos filosóficos, e durante a nossa direcção da FAPF, duas dimensões nos pareceram ser os guias indispensáveis da didáctica do ordenamento espacial: (i) o princípio de que há uma continuidade essencial entre as diversas escalas da intervenção do arquitecto; e (ii) a noção de que a conceptualização espacial é uma forma de materialização racional das necessidades físicas e psicológicas do espaço a projectar para o habitat humano.
Nesse sentido assumo pessoal, e totalmente, a responsabilidade intelectual por uma posição anti-formalista e comprometida com os valores éticos do respeito pelo ambiente e pela economia de meios que sempre defendi como essenciais ao processo conceptual e sempre procurei instilar nos meus discípulos e debater com os meus colegas.
Esta posição, naturalmente, nem sempre foi compreendida ou aceite por todos e criou, mesmo, tensões que considero saudáveis e necessárias a uma didáctica criativa e estimulante.
Transpondo este relato para o tema restrito da habitação, a plataforma do ensino da arquitectura e do ordenamento do território foi, sempre, por mim considerada como o campo ideal para estimular o interesse dos estudantes por essa problemática, através de exercícios que lhes abrissem a consciência para as diversas escalas do problema, situando-os na realidade social, técnica e cultural e nas condições materiais do país.
Balanço de um compromisso com o problema da habitação
Ao fim destes mais de cinquenta anos de participação e intervenção directa ou mediata na solução dos problemas da habitabilidade básica, a maior parte dos quais em Moçambique, que me fica como balanço dessa actividade e desse compromisso?
Em primeiro lugar a noção de que o problema da habitação não se resolve no âmbito restrito da tecnologia e de que a habitabilidade depende da capacidade de produzir espaços à escala humana, completados com os serviços e as infra-estruturas necessárias à vida da sociedade civilizada.
Mais precisamente penso que é importante estabelecer a habitação como um problema de ordem social que só pode ser resolvido quando a direcção política do país conseguir equacioná-lo como uma consequência do desequilíbrio e das assimetrias sociais que se revelam em todos os sectores da vida da sociedade moçambicana.
Nesse sentido o problema da habitação não é diverso do problema da fome ou da assistência social, da educação ou da assistência médica. Se considerarmos como habitação o abrigo mínimo necessário a uma vida familiar saudável e se considerarmos com esse direito toda a população urbana, e rural, de Moçambique então as necessidades são assustadoras. Fiz esse exercício não há muito tempo chegando a conclusões que perdem o sentido pois a sua escala ultrapassa aquilo que se pode compreender intuitivamente.
Melhorar a habitabilidade em contexto capitalista neo-liberal
O problema da habitação, e falo nas condições especificas de Moçambique é, contudo, diverso do problema da habitabilidade. A habitação é um problema urbano enquanto que a habitabilidade é um problema geral da sociedade.
Enquanto que no meio urbano a família depende de mecanismos administrativos e capacidade técnica extrínsecos, tanto para encontrar o lugar da sua casa como para construi-la, no meio rural não são esses os seus problemas mais difíceis de resolver.
Contudo, em ambos os meios, as carências em infra-estruturas e serviços essenciais são as mesmas: falta de água potável, de fontes de energia e de sistemas de saneamento e drenagem, de remoção de resíduos sólidos e de acessibilidade, de serviços públicos, comércio e espaços comunais organizados para a cultura, os desportos e a socialização.
Um dos aspectos que a imposição do modelo capitalista neo-liberal trouxe de mais corrosivo para a criação de uma sociedade mais justa foi precisamente o da promoção da especulação como a única forma de desenvolver o espaço urbano. Quase instantaneamente, a partir do fim dos anos oitenta, o espaço urbano em Moçambique readquiriu as valências discriminatórias do capitalismo colonial-fascista começando a acelerar-se o fenómeno da estratificação topológica dos seus habitantes por categoria económica.
O fenómeno é simultaneamente centrifugo e centrípeto. Empurram-se progressivamente os mais pobres para a periferia e constroem-se continuamente novos bairros numa cintura urbana apenas acessível, e em péssimas condições, a quem tem meios de transporte próprios. A cidade assiste, impotente ou desinteressada, a esta expansão anti-económica, anti-social e ambientalmente destrutiva.
Os exercícios de planeamento urbano, aprovados ou não, são sistematicamente esquecidos, sonegados e atropelados. A estratégia, discutida e aprovada, da requalificação dos bairros “informais”, dilui-se numa sopa de desinteresses e maquinações burocráticas, mascarada por notícias nos media em que ninguém acredita.
Entretanto, os bairros informais, localizados em posições urbanas agora invejáveis, estão na mira da grande especulação e dos grandes esquemas pseudo-sociais que irão empurrar para mais longe, e inevitavelmente, os que não podem pagar para se manter no seu próprio espaço.
Pensar que o desenvolvimento urbano poderia seguir outro caminho seria uma grande ingenuidade intelectual e politica. O sistema de exploração é agora global e não seria um país tão dependente como Moçambique que o poderia enfrentar e dele escapar.
Acabar com a pobreza é, também, acabar com as condições miseráveis de habitabilidade em que vive a maior parte da nossa população. Para já, no entanto, para os que governam, acabar com a pobreza parece significar apenas acabar com ela ao pé de nós, ou, talvez, acabar com os pobres.
Nos exercícios feitos para o Plano de Estrutura do Maputo calculámos que se poderiam requalificar todos os bairros informais do Maputo, em dez anos, com um investimento médio anual da ordem dos 80 milhões de dólares. Naturalmente que para esse esforço seriam necessários: um a dois anos de preparação dos técnicos e do pessoal operativo; a atribuição de funções; a organização dos mecanismos técnicos, administrativos e financeiros; e a mobilização dos recursos humanos e materiais indispensáveis.
Esta seria a maior frente de batalha social que o país jamais teria visto. Mas seria, também, a batalha mais significativa em termos urbanos e aquela que traria maior credibilidade política ao governo da cidade e do país.
Até agora, praticamente, nada se fez. Por desinteresse ou por interesse?
Oitenta milhões de dólares são menos do que custa um pequeno teatro ou museu na Europa ou na Ásia, que já nem sabem para que servem ou onde meter mais museus ou centros culturais. Esses 80 milhões produziriam uma enorme dinâmica de empoderamento das camadas mais destituídas da nossa sociedade e contribuiriam decisivamente para uma renovação urbana que traria retornos desproporcionadamente benéficos para toda a vida das cidades e do país.
Desgraçadamente, a estratégia foi esvaziada de sentido, tornando-se em objecto de pequenos e insignificantes projectos que nem como perspectiva pretendem acompanhar o crescimentos dos bairros informais.
Entretanto fala-se da construção de milhares de casas durante os próximos anos. Para quem? Como vão ser pagas?
Há pouco tempo lançou-se um projecto de 5.000 casas com um valor de 12 mil milhões de meticais, isto é 2.400.000 MT ou $ 86.000 dólares americanos por casa . Será que estas casas terão ruas pavimentadas e drenagem, comércio e escolas, igrejas e estacionamento, centros de saúde, parques públicos, recolha de lixo e transportes? Sem isso não se pode falar de habitabilidade.
Quem, de entre os possíveis candidatos a proprietário, tem capacidade para suportar um empréstimo bancário a 23 ou 24% de juro, depois de fazer um depósito de pelo menos 25% do valor da casa ($17.200 ou 481.600 MT) e tendo que pagar uma prestação mensal média de 34.500 MT durante dez anos? Quanto ganha um professor universitário, por exemplo? Quanto pode pagar para habitação por mês?
Naturalmente a pergunta que se impõe é: o que fazer? A resposta não pode ser nem simples, nem definitiva, mas alguns princípios devem ser estabelecidos:
– o ordenamento do território é uma responsabilidade exclusiva do Estado que deve ser cumprida intensivamente e controlada permanentemente;
– o espaço colectivo não é uma categoria abstracta, definida apenas quantitativamente, mas é qualificado pelos seus atributos de habitabilidade – acesso aos serviços, infra-estruturação, integração urbana e sustentabilidade ambiental;
– as liberdades individuais, quanto às formas de uso do espaço, não devem sobrepor-se ao interesse colectivo;
– na presente fase de desenvolvimento da sociedade e da economia em Moçambique cabe ao Estado ordenar e equipar o espaço e cabe às famílias construir a sua casa;
– a aquisição dessa capacidade é um problema geral da sociedade que tem que ser resolvido progressivamente pela aquisição de meios técnicos e materiais que são da responsabilidade de todos e de cada um.
O que pretendo afirmar pela enunciação destes princípios é que o estabelecimento de condições aceitáveis de habitabilidade para todos não é um problema que se resolve com a construção de habitações, sejam elas construídas pelas famílias ou pelo Estado.
Também se pode depreender daquele enunciado que não há respostas milagrosas que resolvam o problema da habitação e da habitabilidade em Moçambique. Seria pueril, se não mesmo estúpido ou mal intencionado, propor uma resposta completa ou uma solução definitiva para este problema.
O progresso na procura da resolução desses problemas só poderá começar a conseguir-se se:
– as administrações urbanas considerarem que o acesso ao espaço urbano deve ser justamente compensado tributando valores altamente diferenciados segundo a localização do lote ou da parcela, o valor do imóvel e a disponibilidade de serviços, infra-estruturas e transportes e se moralizar o sistema de cobrança dessa tributação;
– se promover a requalificação dos bairros informais como uma estratégia prioritária, urgente e abrangente;
– se criarem os mecanismos e os meios de financiamento e crédito para a construção de habitação social, acessível aos estratos da população com menores rendimentos;
– se promover o uso de sistemas de poupança de energia e de urbanização e construção sustentáveis;
– se estabelecerem incentivos à produção local de materiais e componentes da construção que permitam reduzir o custo da construção da habitação e do seu equipamento;
– se desenvolvam sistemas de formação e curricula que consciencializem os estudantes para esta ordem de problemas e para a sua interdisciplinaridade.
Naturalmente que sem o desenvolvimento económico, social e cultural do país todas esses princípios e condições serão muito difíceis, senão impossíveis, de atingir. Será também indispensável que haja motivação política para começar a reduzir os privilégios e as assimetrias económicas de que beneficiam certos estratos e grupos da sociedade moçambicana.
Para terminar proponho uma reflexão, amadurecida por muitos anos de frustração e provocada pelos contínuos retrocessos no processo de construção de uma habitabilidade melhorada em Moçambique e que se reduz, no fundo, a uma simples constatação: não pode haver uma habitabilidade equilibrada e aceitável no espaço físico onde vive uma sociedade desequilibrada. Sendo o desequilíbrio universal, o problema é, e será, universal enquanto as condições ideológicas e políticas universalmente presentes se mantiverem.
Esta reflexão centra-se numa variável à qual, com a idade, começo a dar mais valor: o tempo. Falta-nos tempo para ver cumprir-se a ideia, e o ideal, de um mundo mais justo e mais habitável.
Se tivermos a coragem, ou a ingenuidade, de acreditar que o mundo vai melhorar, teremos também que ganhar a consciência de que essa melhoria não vai ser significativa nas próximas décadas e, assim mesmo, continuarmos o trabalho de, cada dia, o ir construindo melhor.
Se, pelo contrário, sucumbirmos emocionalmente à aceitação da crescente probabilidade de que a melhoria da condições de vida e, portanto de habitabilidade da maioria da população deste planeta, se não vai verificar, e que o número dos destituídos e descriminados vai aumentar, então que atitude tomar? A escolha é, afinal, uma não escolha: continuar a trabalhar para reduzir, dentro do possível, essa taxa de crescimento da desgraça.
Isto é, de facto, tudo o que eu tinha para dizer. Acredite-se, ou não se acredite, não podemos, e não devemos, escapar ao imperativo de actuar como arquitectos no sentido de, cada dia, tornar mais profunda a consciência da grandeza do problema e de agir por forma a que, ao nosso nível e à nossa escala, possamos contribuir para o ir resolvendo.

JOSÉ FORJAZ

2011

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