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MALANGATANA, O CROCODILO AMIGO

Sempre preferi falar com o Malangatana a falar dele.

Infelizmente isso é, ainda, impossível até que nos reencontremos reencarnados em quaisquer bichos mais ou menos mitológicos.

Por tal razão aceitei contribuir para esta publicação que lhe agradaria, com certeza.

Se as personalidades fossem construídas em estratos, ou layers como se diz agora, este meu amigo seria uma bebinka, tantas as camadas de interesse lhe poderíamos descobrir.

Por isso não é fácil falar dele.

O que o projetou na sociedade moçambicana e no mundo não foi só a sua pintura mas a sua personalidade generosa e o seu compromisso com todas as causas humanitárias e justas.

O que nos tornou amigos foi a sua humanidade e uma fraternidade espontânea e incondicional.

Vivemos muita coisa juntos, fizemos exposições juntos, pensámos arte e muitas outras coisas, juntos.

Puxámos um pelo outro para sair dos maus momentos ou gozar os bons.

Éramos um descanso mútuo e abusámos disso.

Soubemos coisas um do outro que mais ninguém sabia e não era a pintura e a arquitetura o que mais nos aproximava mas a maneira como as fazíamos e esse espanto de nos pagarem para fazermos aquilo de que mais gostamos.

Foi o reencontro, a pretexto de uma independência, que nos aproximou (... que isto de independências deixam uns mais sós e outros melhor acompanhados...)

Reencontrámo-nos em 1974, depois de mais de 20 anos de distância, desde os anos 50 em que ambos trabalhávamos para o Pancho, lá na Rua de Nevala, e de breves encontros ainda coloniais.

Tratava-me ele por “senhor arquiteto” e levou tempo a fazê-lo a tratar-me por tu ... que, afinal, somos da mesma idade!

Seria porque passei alguns anos relutantemente armado em “estrutura” ?

Depois foi meia vida de amizade e de respeito, do prazer de estar juntos e da tolerância para com as mútuas fraquezas.

Mas já falei demais desta amizade e de menos deste munumuzano Ngwenya grande escabichador da caneta e do pincel, atrevido escultor sem medo das grandes escalas, poeta quando se lhe apertava o coração ( mas não fingidor ... que não o conseguia ser), dançarino nas horas cheias, amigo das crianças ... e de botar a sua mão... barítono ou baixo quando se apresentava a ocasião, auto enganador ingénuo quando de políticas se tratava mas seriíssimo ideólogo de manhã até à noite e desde Tokyo à Matalana.

Amava a marrabenta e a Nona Sinfonia, Yeronimus Bosch e a Reinata.

Conhecia Diderot e a sabedoria enciclopédica dos velhos da Matalana.

Sabia “ver o universo no fundo do quintal” ... com uma vénia ao nosso António Quadros, companheiro de tantas aventuras do espírito que a ambos ensinou o sentido da cultura.

Fez sempre, disciplinadamente, a celebração do trabalho, como convicto profissional, que não podia deixar de ser, por lealdade à sua primeira devoção.

Pintar a vida, pintar por amor à vida, pintar por amor às pessoas, pintar por pintar, pintar para ganhar a vida, pintar porque sim, pintar para esquecer, pintar para lembrar, pintar porque não se sabe fazer outra coisa, pintar porque se é pintor, pintar para escapar, pintar para participar, pintar o sofrimento e a alegria, pintar o senso e o transcendente, pintar o ego e pintar o outro, pintar Moçambique e pintar o mundo.

Pintar-se.
Foi o que ele fez. E bem.

Escrevi uma vez que este meu crocodilo amigo pintou o retrato de meio mundo, que para a outra metade lhe faltou o tempo porque veio a parca surpreende-lo a meio da tarefa.
De Moçambique não faltou ninguém nas suas pinturas.
Basta que algum critico de arte se dê ao trabalho de contar.
Pintou muito, à minha frente.
Pintava para as crianças e, às vezes, para os ... adúlteros.
Desenhava na sala de espera do dentista e nos guardanapos do café, nos bilhetes do eléctrico e nas costas do envelope e, assim, aprendeu a desenhar, porque na escola de belas artes só entrou para ensinar.

Pintava do meio para os lados e das pontas para o meio.
A composição acontecia-lhe por indução e sinergia mais do que por visionária ou calculista inspiração.
Ia pintando e compondo, que uma figura pede outra e as duas pedem mais e ... mais e assim por diante.
A sua pintura tem horror ao vazio.
Abusou da cor mas prediletava o vermelho. E porque não, que essa cor tem as melhores conotações politicas e futebolísticas, é a do sangue, das acácias e dos olhos sofridos.
Mas todas as cores e todos os tons lhe serviam para criar a emoção com que penetramos o permanente criptodrama que as suas pinturas exsudam, pois nelas enfiou toda a humanidade violada.

Um democrata da cor.

Era uma presença que enchia o espaço. E o tempo.
Um natural.
Não natural de Maputo ou Moçambique mas um natural de estar no mundo.
No Japão ou na Noruega, no Brasil ou no Paquistão sentia-se tão em casa como na Matalana.

Era um trabalhador, que disso sou eu boa testemunha.
Não me esquece como resolveu os mais de trinta metros de painéis murais para o Pavilhão de Moçambique na Expo em Lisboa, em menos de três meses, num minúsculo apartamento no quinto andar de um prédio que quase não tinha pé direito para a altura dos painéis.
Mas não era assim de vez em quando. Era sempre assim.
Quantas vezes chegava a minha casa sem ter dormido, distraído pelos pinceis e estimulado pelo cheiro da tinta, sentava-se para almoçar
e vinha-lhe o cansaço que quase o adormecia a meio do prato.

Vivia obcecado pela Matalana e, ali e na sua cabeça, construiu os seus melhores sonhos.
Um centro de artesanato, um estúdio colectivo para artistas de todo o mundo, um centro cultural, um teatro de ar livre, uma escola de música, um posto médico, uma igreja reconstruída, a sua casa e um sonho de megafundação, desenhada por outro grande sonhador, com os pés três quilómetros acima do chão: o Pancho Miranda Guedes.
Tudo isso e mais vivemos juntos mas não lhe perdoo não termos acabado o “mudedelene”, que ficou truncado a dois terços da altura almejada, à entrada da Matalana-Malangatana.
Este mudedelene, aquele mesmo que aparecia de noite às mulheres que voltavam a casa sozinhas para lhes meter medo, ficou agora mais mitológico do que já era, mas não recuso o sonho de o ver um dia acabado e com uma fogueira interior a flamejar pelo buracos-poros que lhe deixámos no lombo, para espanto dos simples...

Anos fomos passando anos, assim montados nestas follies que tão a sério levávamos juntamente com o velho Ntila, que construiu quase tudo mas não acabou, ainda ... o mudedelene...!
Pelo meio havia exposições e viagens e conferencias e encomendas e concertos e uma ópera e filmes e amigos a descobrir e entreter e a passar de um para o outro, mármores a trabalhar e a pintar mais uma italiana/Fiat a servir de tela e uma vida subterrânea à nossa volta que era preciso não compreender para não desesperar.
Um monumento no Botsuana e outro em Oeiras pensados juntos, mais as manhãs de Sábado na Matalana e a missa de graças naquela igreja restaurada.

E a casa, eternamente para acabar, que deu mais prazer à esperança do que esperança no prazer.
E fomos passando os anos.
E um dia acabou-se este meu amigo e fiquei eu ainda mais sozinho.

JOSÉ FORJAZ

2015

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