OS MATERIAIS DA ARQUITECTURA
Os materiais essenciais da arquitectura são a poesia e a luz.
A arquitectura, que é a arte da modelação espacial dos materiais para a materialização do edifício é, antes de tudo, uma dimensão táctil da realidade.
Essa dimensão , objectiva e sensorial, advém de que o corpo contacta e sente a construção, o edifício.
Todos os elementos que definem o espaço arquitectónico têm profundos valores sensoriais que lhes vêm da posição e do material. Da topologia e da natureza.
Na cobertura e no tecto percebemos o grau de protecção do edifício, o seu valor , essencial, de abrigo.
O seu peso, a sua presença mais patente ou mais ausente, mais próxima ou mais longínqua dão-nos a noção da qualidade da construção, da sua solidez, da sua natureza e o estatuto social de quem o usa.
O pavimento, a parede e a coluna, são superfícies cujo contacto, cuja textura, cor e ressonância nos afectam, nos atraem ou nos repelem.
O pavimento é a mais inevitável das experiências, aquela que define o humano como corpo, grave com massa e peso. A sua elasticidade, o som que cria, o fresco ou o calor que sente o pé que o pisa, a luz que reflecte, a humidade que absorve ou que mantém, a limpeza que exige ou facilita ou o respeito que inspira ou declina, são qualidades de que o arquitecto pode ter ou não consciência, mas a que não pode escapar.
A pedra ou a madeira, a relva ou o vidro, o linóleo ou o metal, lisos ou texturados, polidos ou riscados, amaciados ou bujardados, aparados ou selvagens, são presenças e experiências marcantes e definidoras dos ambientes que caracterizam.
Os materiais de construção são produzidos pela resultante das duas grandes forças que movem a humanidade : a inteligência e a necessidade.
Os materiais têm vida , são usados, envelhecem .
Os materiais são naturais ou transformados. Descontextualizados tornam-se em dimensões abstractas e formais do universo das formas que nos cerca.
O céu enquadrado pelas paredes do pátio ou recortado pelas cornijas torna-se em duas dimensões, presença próxima, material.
A água, contida ou conduzida, e o fogo, domesticado no lar, são os exemplos mais elementares dos materiais primordiais que o arquitecto deve aprender a dimensionar, a aprisionar poéticamente, técnicamente.
O líquen sobre a pedra ou a prata acetinada da madeira queimada pelo sol são tratamentos, qualidades que se devem aprender a respeitar e que enobrecem o material e quem o sabe usar.
Nos materiais da arquitectura o tempo tem ainda outras e mais extensas consequências.
Quantos sabemos utiliza-lo para enriquecer as presenças que criamos?
Quantos sabemos contar com a patina da idade, com a cicatriz do uso, com o desvanecer da cor, com a incrustação do pó e com o raiar da chuva para dar mais valor e densidade aos nossos edifícios?
Talvez seja certo que expressão mais válida e mais profunda da essência do material se revela, afinal, na ruína, que não é cadáver mas outra dimensão da realidade.
J.B. Jackson escreveu sobre a necessidade das ruínas como um retorno às origens.
Mas será que a todos interessam as origens ?
Neste século, de ilusões interestelares e planetárias, o sintético e o plástico são, ainda, pobres substitutos dos materiais primordiais cuja ciência e sensibilidade nos chega das origens.
A sociedade humana evolui porque sabe aprender da experiência acumulada pelas gerações e transmitida pelas ruínas das ideias e dos edifícios .
A ruína cristaliza a memória colectiva e o respeito pelo passado. O material que a conforma assume um valor sacro e extrínseco que lhe vem da história e se resolve na forma.
Na ruína reconhece-se a verdadeira natureza do material ou do que, no material, mais se aproxima do natural pois , despojado do supérfluo , se revela apenas pelo essencial, ou por uma das formas do essencial.
E é assim, no confronto com a vida histórica dos materiais, que se avalia e se mede a qualidade e a nobreza do edifício actual.
Os materiais mais telúricos, mais directamente relacionados com a sua origem, menos transformados são, por isso mesmo, melhor percebidos e mais profundamente apreciados.
A terra, a pedra, a madeira, a argila crua ou o tijolo cozido, a água e o verde da planta domesticada são o alfabeto básico das nossas sensações habitativas.
Conhecemos-lhes o tacto e o odor, o calor e a frescura, o vergar e o partir, o reflexo relampejante e o veludo da luz absorvida pela superfície opaca e densa.
Do gatinhar em criança vem-nos um conhecimento mais profundo destas dimensões do que o que nos vem dos tratados de construção e da abstracção dos parâmetros físico-químicos.
Quantos de nós, conseguimos manter, através de toda a vida, essa dinâmica do aprendizado dos sentidos?
Mas os sentidos vão-se embotando e esse aprendizado passa, depois, por interposta literatura.
A fórmula química, a equação matemática e os parâmetros físicos não substituem a sensação real ou imaginada. A intuição da dimensão certa vem da atenção ao facto estrutural e da curiosidade enriquecedora de querer perceber como funciona o mundo das formas naturais ou construídas.
Poesia e luz, dois materiais essenciais pois quando a luz se torna material, nas mãos do arquitecto sábio a poesia torna-se luz no espírito do homem sensível.
A arquitectura, como a mais mediata de todas as artes, é a que mais exige de atenção ao processo, a que mais exige da ciência e da tecnologia. Exige tanto que, fácilmente, o arquitecto confunde o processo com o objecto, o projecto com a arquitectura, a construção com o edificio, o material com a sensação.
A arquitectura é uma invenção do espírito, nasce da visão, imaginada, do espaço aprisionado pelos materiais e só começa quando o processo de desmaterialização se completa e a ideia, luminosa e poética, faz dos materiais nada mais do que veículos de sensação.
JOSÉ FORJAZ
2002