PANCHO GUEDES
Pancho Guedes
(tradução e adaptação de um artigo escrito para celebrar o Doutoramento Honoris Causa de Pancho Guedes pela Universidade de WITS em Johannesburg em Dezembro de 2003)
Eu tinha 16 anos em 1952 e Moçambique era o meu segundo país, a minha segunda cultura e a minha primeira descoberta de um horizonte mais vasto.
Toda a minha, curta, vida anterior tinha eu estado apaixonado e encorajado a manipular formas, desenhar e construir modelos de uma realidade que eu só podia controlar a essa pequena escala.
Os edifícios e o mistério da sua construção penetravam, devagar, uma camada profunda do meu mundo imaginário. Mas era o processo mais que os resultados que me fascinavam.
Vivíamos, então, numa sociedade profundamente marcada pelo conformismo, dominada por um regime autoritário e praticando o oposto dos seus próprios princípios éticos, onde todos éramos rebeldes, navegando entre a boémia e o extremismo politico.
Foi precisamente nessa época que o Pancho veio a ser uma presença na minha necessidade de encontrar um mundo diferente.
Ser diferente era necessário.
O Pancho era diferente e, por isso, admirável.
Naquele universo pequeno e provinciano os seus edifícios não deixavam ninguém indiferente. Eram presenças provocadoras, inescapáveis, demarcando-se de uma colecção maçadora, ou assim a sentíamos, de caixotes modernistas ou exercícios revivalistas vagamente “português suave”, com um travo de América Latina, ou simplesmente tentativas pueris de um neoclassicismo ultrapassado.
Aos dezassete anos, exactamente há 56 anos, fui ter com o Pancho e pedi-lhe se podia trabalhar para ele como desenhador. Nessa altura tinha eu já uns meses de trabalho nas Obras Públicas como desenhador “tarefeiro” sob o controle de um duro mestre, o Fernando Mesquita, arquitecto ele próprio e admirador critico do trabalho do Pancho. Foi ele quem me ensinou as virtudes do rigor, da racionalidade do pensamento, da necessidade da cultura e do valor do trabalho.
Era um ambiente seco, mitigado só por um generalizado sentido de humor partilhado por todos à minha volta.
Com o Pancho a experiencia alargou-se ao outro lado do espectro.
A necessidade da invenção vinha primeiro. A falta de imaginação era um pecado mortal e a manipulação das formas era um exercício obrigatório, avançando para lá das últimas explorações publicadas e avidamente estudadas numa copiosa literatura arquitectónica a que, pela primeira vez, eu tinha acesso.
Depois havia as obras onde eu era levado para medir vãos de portas e janelas, fazer o levantamento de velhos edifícios e, na maior parte das vezes, simplesmente para ir, ver e gozar a incrível atmosfera de um edifício a crescer do nada para se tornar obra de arte.
A vitalidade daquele lugar nunca era menos que vibrante. O trabalho, os livros, os clientes, os construtores, mesmo a pausa para o chá e biscoitos da Dory, tudo andava á volta desta obsessão com a arquitectura, a pintura, a escultura e as artes. O Malangatana pintor tinha começado, também nessa altura, a sua extraordinária produção, na garagem do Pancho
Outros chegavam e partiam. Panos bordados e madeira esculpida saíam daquela garagem, á volta de ideias ás vezes tão infantis que nos poderiam enganar como uma naiveté de chegada e não de partida. Por essa altura eu partia e voltava da Escola de Belas Artes do Porto, onde tudo me parecia abafado, atrasado e, talvez até, seguro demais de si próprio.
O Pancho e a Dory tinham começado, entretanto, um negócio de importação e venda de objectos decorativos e artísticos e, durante algum tempo, eu procurei e comprei para eles, em Portugal, peças muito interessantes de arte popular. Isto deu-me um contacto profundo, e um novo respeito, pela seriedade e qualidade das tradições formais da arte não erudita.
Através do escritório do Pancho, e da minha vida, bons amigos passaram que lutaram pela glória da arquitectura e da sua obcecada irmandade. Arquitectos e artistas. E outros, os cognoscenti e os intelectuais, mesmo os políticos. O ingrediente mais importante destas amizades foi sempre o compromisso de gozar os resultados da criatividade, da expressão e da liberdade de pensamento.
Havia contudo um dogma – ser antidogmático. Viver dessa maneira não é simples nem fácil. Aprendemos, todos, o preço de arriscar, de abrir caminho, de desafiar convenções, de inventar. Criámos, sem essa intenção, inimigos, lambe botas, antagonismos intelectuais, invejas e falsos discípulos.
Uma lição que eu aprendi com o Pancho, e que é tão válida agora como sempre foi: é que a aventura da arquitectura, da invenção do espaço onde o homem vive e ama, é tão irresistível que nos empurra, todos os dias, para mais um passo, mais um trabalho, mais uma descoberta, mais um esforço, mais uma alegria.
É uma lição de atitude, não de forma. A forma é pessoal como o comprimento do nariz ou as riscas da zebra. Mesmo o processo é pessoal e circunstancial, para lá da disciplina.
A atitude aprende-se por emulação e compreensão.
No caso do Pancho as raízes do sucesso, ou, como dizem os franceses, da sua grandeza e miséria, são uma capacidade enorme de fabricar e manter viva uma inflexível fé em si próprio e o gozo verdadeiro do que faz e que continua a fazer.
Passaram anos. O mundo deu voltas, os criados passaram a patrões e os velhos patrões desapareceram ou foram substituídos pelos novos.
Os anos 70 foram anos de grandes escolhas e opções.
Ambos, como tantos outros, mudámos de lugar e de regimes. O Pancho tornou-se um universitário. Eu não poderia segui-lo e ficámos separados pela geografia de dois regimes opostos.
Suspeito que ele se tenha divertido imenso. O Pancho foi sempre muito comunicativo, e teve sempre muito para comunicar. Tanto que a lógica das suas associações e das suas referencias culturais não são sempre fáceis de seguir e, por isso, de aceitar.
Ele fala uma linguagem codificada, de imagens e metáforas que devem ser aprendidas para poderem ser plenamente apreciadas. O seu riso pode ser gelado quando se lhe percebe a fundura da ironia. Mas o seu entusiasmo é sempre contagiante. Tudo isso mais a sua capacidade de identificar instantaneamente as virtudes e as fraquezas de um projecto, faz dele um formidável critico e professor.
Posso adivinhar como o ambiente académico lhe deve ter sido, por vezes, asfixiante, maçador, enervante e limitador. Eu senti o mesmo depois de mais de vinte anos desses sofrimentos. Mas posso também adivinhar que o Pancho teve um grande gozo puxando o tapete debaixo dos pés de tantas certezas e hábitos estabelecidos. Ele, tenho disso a certeza, descobriu e estimulou o potencial universal da criatividade dos estudantes, a sua paixão, a sua curiosidade e a alegria da descoberta. Nisso ele é um mestre indiscutível.
Ele propõe, quase obsessivamente, uma atitude de desafio aos formalismos do establishment, a liberdade de pensamento e a informalidade no comportamento mental. Mas o que nos deu é, para lá de tudo, um volume enorme de trabalho de qualidade excepcional, com a autoridade que lhe vem de ter desenhado e construído muitos projectos, pintado muitas telas, manipulado muitos materiais, reflectido sobre muitos níveis do oficio de ver, olhar, aprender e produzir a forma artística.
O Pancho nunca foi um politico, um especulador ou um socialite. O trabalho veio-lhe de uma sociedade que lhe reconheceu o valor, a eficiência, a novidade do seu impulso poético e a força da sua fé no valor redentor da arte.
O que quero afirmar nesta eulogia é que nós deveríamos não só reconhecer o valor do trabalho do Pancho, e celebra-lo, mas olhar para esse trabalho como o resultado de uma atitude e de uma vida de dedicação e amor por aquilo de que também gostamos. É por isso que, através desta celebração, se podem estabelecer novas referencias para os estudantes e para os profissionais e artistas. É por isso que agradecemos ao Pancho e lhe damos os parabéns por este reconhecimento.
Não poderia terminar sem relembrar a Dory e lhe fazer justiça pelo apoio que sempre deu ao Pancho e que foi essencial para o que ele conseguiu.
Obrigado Pancho e Dory. É para mim um privilégio poder dizer isto em público.
JOSÉ FORJAZ
2010