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UMA ESTRATÉGIA PARA O MELHORAMENTO E REABILITAÇÃO DOS SLUMS EM MOÇAMBIQUE

Texto elaborado no quadro de um Projecto de melhoramento e reabilitação dos slums em Moçambique, financiado pelo Habitat - Nações Unidas.



Uma estratégia para o melhoramento e a reabilitação dos slums é uma questão difícil de estabelecer e de resolver.

A condição de slum é a consequência de dimensões regionais, nacionais e globais do subdesenvolvimento de certas regiões, de nações e de cidades, com raízes num complexo de causas sociais, económicas, culturais e políticas e em circunstâncias que não se podem compreender e resolver senão juntando e integrando esforços em todas essas frentes.

Algumas dimensões básicas do problema dos slums devem ser compreendidas antes de se estabelecerem quais- quer estratégias e de as implementar.
Consideramos como indis- pensáveis os seguintes princípios que devem guiar as acções de qualquer programa de reabilitação ou melhoramento dos slums:

• slum é, na maioria dos casos, a consequência de um processo longo e complexo de ajustamento das famílias e dos indivíduos a condições adversas, em que os seus interesses, muitas vezes opostos, encontraram uma forma de coexistência num equilí- brio precário mas, apesar de tudo, reconhecido por todos;

• a longa aprendizagem de vida num ambiente urbano é, na maio- ria dos casos, melhor apreendida por aqueles que se instalam nos chamados slums, com uma mais profunda compreensão dos hábitos de civilidade e dos códigos de comportamento, do que por aqueles que se transferem directamente de uma situação rural para um bairro urbanizado, melhor organizado espacialmente, com melhores infra-estruturas e mais central.

• a vontade, a capacidade e a motivação para melhorar a qua- lidade de vida e de habitação nos slums são altas e fáceis de mobilizar se houver um programa de acção sólido e que os residentes sintam como realístico e plausível.

• a ordem de prioridades de qualquer contributo ou apoio ao slum deve ser sempre estabelecida com os residentes da área considerada e nunca a priori, mesmo que algumas intervenções pareçam mais básicas e indispensáveis aos planificadores. O próprio processo de envolver os residentes nessa definição é um passo estratégico que dará aos residentes a noção de “propriedade” do projecto.

• o desenvolvimento de um programa, com os seus projectos sectoriais, deverá contar sempre com os residentes como a maior reserva de mão de obra e recursos humanos para a sua implementação; desta maneira uma das principais con- dições do sucesso de qualquer intervenção está garantida: o emprego, mesmo que numa base temporária.

• uma definição clara dos direitos de uso e ocupação da terra é uma condição essencial para que se obtenha uma participação activa e incondicional dos residentes, em qualquer intervenção de reabilitação de slums.

• os direitos de uso e ocupação devem ser estabelecidos, registados em cadastro, certificados e assegurados a todos e a cada família residente.

• todas as áreas ou parcelas de terra devem ficar com um estatuto claro de condição de uso e aproveitamento no fim de um exercício de reabilitação de slums.

• tal como para a zona planificada da cidade, os projectos de slums devem considerar sempre todas as famílias residentes ou indivíduos, e os seus domínios e direitos espaciais, qualquer que seja a extensão ou a dificuldade do processo.
A experiência prova que, onde os residentes estão envolvidos no processo de reabilitação desde a sua concepção, a definição de prioridades e estratégias de implementação, tarefas que poderiam parecer quase impossíveis sem a sua cooperação, revelam-se não apenas possíveis mas facilmente cumpridas.

Os princípios enunciados foram estabelecidos através de uma prática que considera os beneficiários de qualquer acção de reabilitação, como os primeiros responsáveis pelo seu próprio futuro e pelas consequências das suas próprias atitudes e escolhas. Esta é uma condição sine qua non para o sucesso de qualquer programa ou projecto.

Limites correntes e reconhecidos das operações de reabilitação dos slums.

Dentro dos limites económicos, técnicos, administrativos e do con- texto cultural das intervenções de planeamento e renovação urbana, em qualquer cidade de Moçambique, devemos estabelecer uma ordem geral de prioridades que possa servir como guia para a construção de um cenário com sucesso para essas intervenções.

Limites e retornos financeiros

Os limites financeiros de qualquer projecto devem ser estabelecidos em função dos objectivos a alcançar. Por outras palavras os limites financeiros são relativos ao âmbito e às dimensões das operações a desenvolver.
Neste sentido temos apenas duas práticas:

• pré-definir um limite aos recursos financeiros a serem empregues para um objectivo específico e, depois, estabelecer os limites físicos ou sociais do projecto;

• estabelecer os objectivos e os limites da intervenção e, depois, quantificar os recursos financeiros comensuráveis com os resultados pretendidos.

No primeiro caso, os agentes financeiros devem esperar pelo desenvolvimento do projecto para conhecerem o que foi efectivamente alcançado com os recursos financeiros atribuídos. No segundo caso, esses agentes devem aceitar a definição dos objectivos e a extensão para quantificar os recursos financeiros a atribuir.

A reabilitação e o melhoramento de slums é um exercício caro, mas altamente rentável pois produz poderosos resultados económicos e sociais desde o início do seu desenvolvimento.

Esses resultados podem e devem ser medidos pelo seu impacto social e económico, nas comunidades afectadas pelo investi- mento, assim como pelo aumento da capacidade da cidade em adquirir um conhecimento mais profundo dos seus próprios problemas e no melhoramento da sua capacidade, técnica e administrativa, para os resolver. Não menos importância têm os benefícios ambientais obtidos pelo melhoramento das condições de vida nas áreas melhoradas, assim como na cidade em geral.

A experiência adquirida em operações desta natureza não é directamente reutilizável pois que não há dois slums com as mesmas características.

Limites administrativos e técnicos

Os 33 municípios recentemente criados em Moçambique têm severas limitações na sua capacidade administrativa e técnica para intervir no âmbito do melhoramento das condições de vida nos slums que são parte, em todos os casos, da sua periferia.

No contexto administrativo há, em geral, uma atitude muito passiva, altamente burocrática e rígida sem grande capacidade para criar ou aceitar novas atitudes e formas de resolver problemas. As formas de arquivação de dados e documentação são manifestamente ineficientes, não há capacidade de transporte ou para detectar e resolver problemas in loco e a motivação é, em geral, baixa.

Adicionalmente, a maioria dos departamentos não tem pessoal formado e suficiente, com boas condições de trabalho, salários aceitáveis e direcção técnica. Os trabalhadores do município são pagos como funcionários públicos e não têm quaisquer outras facilidades ou prerrogativas. A tentação para vender favores e prioridade de acesso aos mecanismos de decisão é comum e prática corrente e muito difícil de erradicar. A descentralização das decisões e do controle para estruturas de bairro encontra os mesmos problemas e representa um encargo extra para as finanças municipais.

No âmbito técnico a situação não é melhor.
De facto, a disponibilidade de capacidade técnica é reduzida, sem longa experiência, mal remunerada e forçada a trabalho extra. Na maio-
ria dos casos, em qualquer dos serviços, não há um só técnico com formação em qualquer dos ramos da engenharia ou do planeamento urbano. As condições de trabalho, onde existem ser- viços técnicos, são normalmente inadequadas e insuficientes. Os materiais de arquivo, registos cadastrais, cartografia, levanta- mentos topográficos, fotos aéreas e suas restituições, documentação sobre infraestruturas e mapas, etc., são, em regra, inexistentes, desactualizados ou de muito baixa qualidade. Os registos e levantamentos demográficos são também muito gerais para que possam servir de base fiável e não há, normalmente, informações de carácter socioeconómico.

Ordem social

Dentro das condições descritas, é admirável o sentido de ordem e de coexistência pacífica que a maioria dos cidadãos goza e pratica face a uma inexistência de instrumentos formais de controle social e de informação.

Este aspecto deve ser compreendido à luz das fortíssimas estruturas sociais tradicionais onde os laços familiares e as relações hierárquicas mantêm a sua relevância social. A autoridade “informal”, que essas tradições corporizam, é aceite como uma forma indispensável à integração social do indivíduo. Este é um aspecto fundamental a considerar na concepção e no desenho de qualquer intervenção que possa alterar a forma física.

Relações de ordem social, económica, cultural, etc., podem ser negativamente afectadas mesmo que, à primeira vista, possa parecer que essas intervenções só podem trazer-lhes vantagens.

As pessoas sujeitas a operações de transferência do seu local de residência têm um sentido muito forte das possíveis consequências dessas mudanças na sua vida quotidiana e resistirão a elas até que positivamente convencidas dos seus benefícios imediatos e a longo prazo.

O ambiente do planeamento

Planificar mudanças positivas nas condições de vida de um grupo humano, espontaneamente organizado nos chamados slums, não pode ser um exercício experimental ou um projecto piloto, onde os residentes sejam tomados como cobaias a ser usadas para provar uma teoria ou preencher um objectivo projectado por uma consultoria de natureza mais ou menos tecnocrática.

A reabilitação ou melhoramento de um slum exige a presença permanente da equipa de planeamento e uma relação cuidadosamente construída com os residentes, o que é a base para a confiança mútua.

A eliminação dos slums exige portanto uma estrutura operativa capaz de desenvolver um conhecimento profundo do campo de operações incluindo não só as características físicas da área mas a sua composição social, a dinâmica interna do
grupo e a estrutura de autoridade real. Os elementos perturbadores da estabilidade que possam afectar os residentes e a história da formação da forma urbana e do sistema de valores com significado especial para o grupo social são outras dimensões essenciais a estudar e equacionar.

Para lá do que ficou dito, exige-se ainda uma compreensão perfeita da importância das relações com os outros bairros, a sua correcta inserção na rede de infraestruturas urbanas e as suas necessidades em termos de serviços e equipamentos sociais.

Será então fácil reconhecer que a melhoria dos slums não pode ser reduzida a um exercício de projecto onde os diversos parâmetros se combinem numa equação, de uma forma mais ou menos racional, para ser aplicada como “solução” ou remédio, pois que o tecido doente da cidade é feito de pessoas. Não há fórmulas de aplicação geral ao problema geral da erradicação dos slums. A chave essencial do sucesso nestes trabalhos é a participação e a participação não se obtém pela interpretação de documentos téc- nicos.
Ela tem que ser conseguida e materializada no campo, com os residentes e numa base de contacto e relação permanente.

Qualquer tentativa de redução dos exercícios de melhora- mento dos slums a uma série programável de operações, quantificáveis em termos de custo e tempo, está destinada ao insucesso ou poderá resultar numa forma de violência sobre os direitos e as aspirações dos que deveriam ser os beneficiários dessas operações.

O melhoramento de uma área urbana, em estudo e consideração, se afasta do princípio de que o melhoramento e reabilitação de um slum implica necessariamente a remoção da maioria das famílias do seu local de residência o que seria, para começar, contra a lei moçambicana e contra a ideologia política do governo.

A premissa básica é a de que os residentes, provavelmente na sua grande maioria, adquiriram direitos de “ocupação de boa fé” do talhão em que residem, se nele estão instalados há mais de 10 anos.
Contudo, mesmo que uma família resida no seu talhão há menos de 10 anos, não haverá com certeza qual- quer interesse em tornar a sua vida ainda mais difícil, obrigando- a a mudar-se à força para conseguir uma qualquer ordem geométrica de eficiência e justificação muito discutível.

A imposição de um sistema de ruas rectilíneas, em gre- lha ortogonal, com o terreno subdividido em talhões rectangulares regulares, como a única solução para um tecido urbano estruturado é, na maioria dos casos de slums consolidados, uma violência que não deve sequer ser considerada pois implica um sofrimento enorme, um custo excessivo e a alienação dos residentes em ter- mos das suas relações pacíficas com as autoridades.

O ambiente do planeamento acima proposto deve ser um tema central para discussão num fórum dedicada aos problemas do melhoramento e reabilitação dos slums.
Não é possível construir uma atitude e política nacional para o objectivo das “cidades sem slums” sem a definição de uma posição geral e comummente aceite em relação a este problema.

As implicações de uma filosofia de operações tal como acima construída, são as de que os municípios devem adquirir a capacidade técnica para organizar e administrar, e serem providos com os meios e recursos necessários para o planeamento das operações de reabilitação de melhoramento dos seus slums, pois que tais pro- gramas não podem ser cumpridos a partir de projectos no papel.
Moçambique, contudo, é um país com um muito limitado número de planificadores formados, a maior parte deles em Maputo e com maiores expectativas do que pode assegurar um salário de funcionário.

Há, contudo, um número suficiente de jovens dispostos e disponíveis, apenas graduados e em processo de graduação, para assegurar capacidade suficiente para todos os possíveis programas de reabilitação e melhoramento de slums nas cidades principais do país, se lhe forem garantidas condições minima- mente aceitáveis de trabalho. A nossa experiência neste campo é muito positiva e podemos confiar em que com uma fracção menor do custo de importação desses projectos e especialistas, podemos atender, internamente, às necessidades técnicas que permitam montar um programa sólido e consistente de melhora- mento e reabilitação dos slums.

Uma outra condição é essencial para o sucesso desse programa, que depende de técnicos com experiência muito limitam de apoio técnico constante que lhes dê confiança e um controle permanente pois que, na maioria dos casos, eles estarão a trabalhar num grande isolamento e com muitas dificuldades de acesso a informação técnica. Por outro lado, a troca de experiências e o aprendizado com os sucessos e os erros dos outros indica também a necessidade de um apoio que funcione como local de concentração e disseminação de experiências e de construção de uma memória colectiva sobre esta matéria.

A criação de uma unidade central de apoio formada por técnicos experientes, altamente móvel, com acesso a capacidade técnica especializada sempre que necessário, é um complemento indispensável à distribuição de capacidade técnica pelos municípios.

Como utilizar os recursos disponíveis para o melhoramento e reabilitação dos slums

Os slums são zonas urbanas que não oferecem aos seus residentes condições de vida minimamente aceitáveis. Essas condições são de diferente natureza e devem ser estudadas e resolvidas com estratégias diversas. Os aspectos mais evidentes que requerem atenção e medidas correctivas são:

• a ocupação de lugares inadequados onde o risco de inundações e enxurradas ou outras formas de erosão podem acarretar até à perda de vidas;

• uma localização inadequada em relação à estrutura urbana da cidade, ao sistema de ruas e estradas ou à topografia do terreno;

• falta dos serviços básicos – água, saneamento, colecta de lixo, energia e comunicações;

• densidade humana exagerada;

• qualidade de construção muito baixa quer nas habitações quer nas outras construções;

• inexistência de uma rede viária adequada;

• inexistência de iluminação pública;

• inexistência de um sistema de identificação pessoal tal como nomes das ruas e números nas casas;

• inexistência de espaços públicos organizados;

• insuficiente dotação em termos de equipamentos sociais tais como escolas, serviços médicos, mercados, comércio organizado, administração pública, polícia, equipamentos de lazer, edifícios religiosos adequados e dignificados, equipamentos desportivos e culturais, bancos, etc..

Algumas outras características dos slums, em Moçambique são menos tangíveis mas, nem por isso, menos significativas para a vida dos residentes:

• falta de segurança em relação à ocupação do talhão;

• ignorância dos direitos legais e dos mecanismos a usar e aos quais apelar para a defesa dos direitos próprios;

• inacessibilidade ao crédito;

• distância (psicológica e física) às autoridades municipais;

• falha de um espírito comunal e de motivação para iniciativas associativas;

• falta de controle de actividades criminosas e ilegais.

Naturalmente que nem todas estas condições existem em todos os slums e com o mesmo grau de importância ou incidência, mas estes são problemas que devem ser considerados ao conceber uma estratégia de intervenção para a reabilitação ou melhoramento dos slums.

Poderemos agora considerar a possibilidade de que, atra- vés de uma das agências de cooperação bi ou multi laterais possa haver fundos disponíveis para intervir decisivamente no melhora- mento ou reabilitação dos slums das cidades de Moçambique.

O que fazer

Qual a ordem de prioridades, dos problemas a atender primeiro? Onde começar? Em que cidade? Em qual slum?
Esta é uma série de questões muito difícil de responder e requer decisões
de natureza política que devem ser traduzidas em documentos de orientação.

Contudo antes de, e para informar a decisão política, há a necessidade de definir uma estratégia de base para a quanti- ficação dos meios financeiros, técnicos e logísticos necessários
à intervenção. Quais são os parâmetros essenciais a considerar para a construção dessa estratégia? Tomando as indicações que nos vêm da situação atrás descrita, os seguintes aspectos deve- riam ser considerados como uma base sólida sobre a qual cons- truir uma estratégia:

• a necessidade de um conhecimento íntimo da situação de cada slum no que diz respeito a todos os aspectos acima indicados e a quaisquer outros específicos de cada caso;

• a necessidade de considerar os direitos de todos os residentes como a primeira realidade sobre a qual basear a intervenção: isto quer dizer que, mesmo no caso em que possa haver uma necessidade imperiosa de transferir as famílias, cada família deve ter direito a uma compensação proporcional ao valor da sua presente ocupação e situação;

• a necessidade de estabelecer um sistema de dados e de registo de cada caso e de cada ocupação familiar, devidamente reconhecida e testemunhada pelos vizinhos;

• a necessidade de conhecer o número de moradores, a sua ou fontes de rendimento, etc.;

• a inserção do slum na estrutura urbana e a sua ligação com o sistema viário, redes de infra estrutura, serviços, etc.;

• a topografia, hidrologia, geologia, ecologia, micro clima e todos os parâmetros e dimensões do local;

• o potencial do município para fornecer os dados e informações necessárias e para assistir ou levar a cabo o programa de intervenção;

• as possíveis alternativas para a transferência de todos, ou parte, dos residentes, caso tal seja necessário;

• a existência de organizações comunitárias ou sociais a envolver em todo o processo e nos contactos com as famílias;

• a estrutura da autoridade municipal no bairro.

É fácil reconhecer que muita da informação e, em certos casos, quase toda a informação necessária, ou não existe ou é impossível de obter com os meios técnicos e logísticos disponíveis nos municípios. Não só falta a informação mas os municípios não têm a capacidade necessária para dirigir e controlar as operações de inquérito, registo e criação de bancos de dados e sistematizar o seu arquivo, consulta e actualização e, finalmente, fazer uso dessa informação.

Esta situação é verdadeira, em graus diversos de gravidade, para todos os municípios do país, incluindo para a capital e todas as capitais provinciais. As operações referidas acima são uma condição sine qua non para a viabilidade de qualquer intervenção nos slums ou, pelas mesmas razões, para qualquer intervenção na cidade.
Não poderemos esperar por administrações municipais perfeitamente operativas e equipadas com corpos técnicos experientes e competentes, para começar ou manter em funcionamento os programas de melhoramento ou reabilitação dos slums tão urgentemente necessários para as cidades de Moçambique. Mas devemos usar a oportunidade que se abre, para o lançamento e desenvolvimento de um programa de melhoramento dos slums, para construir a capacidade, adquirir a experiência necessária e criar as estruturas municipais administrativas e técnicas para o funcionamento correcto das nossas cidades.
Isto quer dizer que, assumindo que se materializem os recursos para um programa de “cidades sem slums”, o primeiro passo deve ser o de criar os mecanismos necessários para tornar os municípios capazes de identificar e quantificar o problema e dotá-los com os meios cartográficos e os dados técnicos indispensáveis a qualquer exercício de reabilitação ou reassenta- mento e com os meios necessários e suficientes para o arquivo e consulta dos dados recolhidos.

O primeiro e o mais comum obstáculo ao projecto de uma intervenção viável e realística, em qualquer das nossas cidades,
é, de facto, a falta das informações mais básicas e essenciais em forma utilizável. Embora tenha havido uma série de exercícios de planeamento, desde os “planos de estrutura”, aos “planos de desenvolvimento municipal”, aos “planos parciais ou planos de pormenor”, encomendados e pagos a consultores de todas as partes do mundo, de dentro ou de fora do país, que ocupam muito espaço em prateleiras e gavetas da administração pública, estes para pouco servem pois que nem na sua elaboração nem para a sua impossível implementação se criou ou se envolveu qualquer grau de capacidade local. Estas considerações trazem- nos de volta ao primeiro elemento indispensável a qualquer estratégia de planeamento – a participação.

A participação é uma forma de trabalho indispensável não só na procura de soluções para os problemas urbanos mas como um elemento indispensável à formação e treino dos órgãos operativos do município (administrativos e técnicos). Preparar um plano longe do seu contexto humano e da sua realidade administrativa, ou sem o envolvimento da comunidade local e dos
órgãos municipais, é perder a melhor oportunidade para formar as pessoas e construir a instituição.

Arriscaríamos, agora, a definição de uma primeira prioridade: a criação e a institucionalização da competência interna para o planeamento e para conduzir, monitorar e realizar a aplicação dos instrumentos de planeamento, em cada município. Para materializar este primeiro passo, ou prioridade, são necessários três recursos:

• capacidade técnica e administrativa dentro do município;

• condições logísticas e materiais para o trabalho dos técnicos e para os serviços encarregados do planeamento;

• apoio técnico e legal.

É este mecanismo, até agora praticamente ausente em todas as administrações municipais, que deve tornar possível a organização e a operação do processo de participação.

Já vimos que no país podemos encontrar profissionais formados, em número suficiente, capazes e disponíveis para assumir as responsabilidades definidas nos termos de referência, aqui esquematizados, para o seu trabalho. Os exemplos exis- tentes provam a sua capacidade para se adaptarem a condições muito difíceis de trabalho, produzindo resultados muito relevantes com um mínimo de apoio técnico.

Esta é uma situação nova no país e o resultado de 28 anos de esforço, iniciados em 1977, com a formação de “agentes ele- mentares de planeamento físico”, que culminou em 1991, com a graduação dos primeiros alunos da Faculdade de Arquitectura e Planeamento Físico da (FAPF) Universidade Eduardo Mondlane. A FAPF graduou, entretanto, mais de 250 arquitectos-planificadores físicos. A maioria desses graduados manteve-se no país e, com uma produção de 15 a 30 graduados por ano, não é difícil encontrar elementos disponíveis para assumir estas tarefas.

Onde as maiores dificuldades se manifestam e onde as contribuições exteriores podem fazer a diferença é na criação de condições de trabalho, tanto logísticas como financeiras, para pagar
a esses técnicos, adquirir o equipamento e assegurar as condições de trabalho para os seus exercícios de planeamento. A presença desses técnicos na administração municipal não garante, por si só, a solução dos problemas de planeamento pois que eles deverão fazer face a um grande numero de situações que necessitam apoio técnico externo, até agora impossível de fornecer, numa base permanente, a todas as administrações municipais.

Esta situação necessita que se estabeleça como uma nova prioridade – a criação de um mecanismo de apoio de âmbito nacional para responder às necessidades dos serviços técnicos dos diferentes municípios, resolver casos específicos de natureza técnica e funcionar como um mecanismo de cruzamento de experiências e informações e, ainda, para contratar a capacidade especializada para a solução de problemas sui generis.

A natureza deste mecanismo, tal como a sua inserção no sistema municipal nacional, não é simples de definir e de quantificar. Contudo é claro que deve ser composto e fazer apelo aos técnicos mais experientes do país para trabalharem como consultores na definição dos programas, estratégias técnicas e soluções para cada problema que não possa ser resolvido local- mente. Idealmente deveria ser um organismo independente, capaz de construir uma base filosófica para as grandes linhas de orientação do planeamento a serem propostas a todos e a cada município do país.
Deveria, muito provavelmente, ficar dependente de uma Associação de Municípios que lhe forneceria uma visão em profundidade e extensão, das dificuldades do planeamento urbano no país, e uma plataforma de discussão das polí- ticas produzidas como o resultado da experiência comum, que este órgão integraria.

É nossa convicção que sem este mecanismo de suporte a aquisição de experiência, em todas as diversas situações e casos, não poderá ser suficientemente amadurecida nem transformar-se num conjunto utilizável de regras e orientações para a actividade de planeamento urbano e, em especial, para os pro- gramas de reabilitação e melhoramento dos slums no país.

A criação de um órgão de consultoria desta natureza necessita de recursos suficientes para os honorários, para o estabelecimento de condições mínimas de trabalho e para a sua própria administração e um staff administrativo e técnico permanente. A logística desta componente dentro da estratégia global assume alguma importância dado que se deve prever uma grande incidência de transportes e uma importância substancial de consultoria especializada. Deverão ser-lhe disponibilizados meios informáticos sofisticados e um sistema avançado de arquivação e distribuição de informação.

Este órgão deveria também assumir como tarefa sua, a preparação para publicação e disseminação da informação, como um veículo para os contactos entre os municípios e com organizações internacionais congéneres. Finalmente deveria ainda assumir a responsabilidade pela organização periódica de
encontros de natureza técnica onde as experiências e os avanços do planeamento no país sejam discutidos e sejam objecto de reflexão e análise crítica.

A descrição da natureza deste mecanismo de suporte deixa claro que não se propõe a duplicação de qualquer estrutura governamental existente ou que se assumam quaisquer das suas funções. Essa descrição pretende também clarificar a noção de que deveria ser um órgão administrativamente muito “leve”, cuja utilidade dependerá exclusivamente da sua eficiência e capacidade de resposta.

Conclusão

Concentrámos as nossas observações e as nossas propostas nos mecanismos operacionais do planeamento para um melhor ambiente urbano em Moçambique.

Após muitos anos de actividade de planeamento e de construção de instituições, este é o factor que consideramos decisivo para o sucesso na aplicação dos recursos, sempre escassos, para a solução do problema.

O problema de definir e quantificar uma contribuição decisiva para o melhoramento e reabilitação dos slums em Moçambique não pode, nos limites deste trabalho, ser resolvido ou mesmo definitivamente estabelecido. É nossa convicção, contudo, que sem os mecanismos propostos aqui nem mesmo essa definição e essa quantificação serão possíveis ou válidas
pois que a aplicação de recursos, sem a capacidade para a sua administração, só pode levar ao desperdício e à frustração e atrasar soluções estruturadas para essa, muito urgente, ordem dos nossos problemas urbanos.

Se a participação é a palavra chave para o sucesso da melhoria dos slums e o planeamento é uma condição indispensável para a correcta utilização dos recursos, então o estabele- cimento da capacidade de planeamento é a condição indispensável para o sucesso da participação orientada para a utilização mais efectiva dos recursos disponíveis.

Finalmente gostaríamos de isolar um aspecto particular do impacto das operações de reabilitação e melhoramento dos slums e que tem um valor fundamental para a sustentabilidade das intervenções. A aplicação de fundos e recursos externos no ambiente do slum pode e deve ser um momento privilegiado para providenciar emprego aos residentes, que poderão aprender novos ofícios e capacidades e desenvolver iniciativas econó- micas, contribuindo para um sentido positivo de mudança, sem o qual, as causas para a situação de degradação subsistirão.

A reabilitação de um slum deveria levar à criação de empregos permanentes, uma vez que a noção de serviços e benefícios comuns seja inserida nos valores comunitários, que deveriam, esses, ser uma das principais consequências de qualquer intervenção de melhoria urbana.

JOSÉ FORJAZ

2005

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